Sobre os usos políticos equivocados do conceito pós-moderno de "lugar de fala".

“Lugar de fala” é um conceito que pretende afirmar o protagonismo dos oprimidos.

Refere-se à uma afirmada (teoricamente) legitimidade da experiência vivida pelo oprimido como único critério capaz de enunciar um falar que tenha a potência de deslocar o opressor do lugar de dominação que ele ocupa, por força das relações de poder vigentes na sociedade de classes.

Só uma fala assim construída seria capaz de expressar uma configuração social que, expressando um novo arranjo das relações de poder, conferiria reconhecimento a cada pessoa, mas apenas na medida em que esta pessoa ocupe a área predeterminada (de novo, pela teoria) do seu lugar legítimo de falar. Só assim se poderiam romper os limites impostos pela ordem excludente dominante, permitindo a visibilidade e a luta por direitos e reivindicações dos grupos excluídos.

Até aí, estamos no âmbito da teoria. Tenho minhas reservas (muitas, na verdade) quanto a esta teoria, mas não é isto o que me interessa discutir aqui. Me interessa mais discutir os maus usos políticos do conceito e as dificuldades que eles criam para alcançarmos o fim comum, que é o fim da dominação.

Para isso, vou me servir de um trecho de um artigo de autoria de Renan Quinalha, muito mais bem escrito do que eu poderia fazê-lo, cuja leitura recomendo a todos, acessável em

http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/,
 

"(,,,) Determinados usos (e abusos) desse conceito de “lugar de fala” têm levado a uma lógica problemática de privatização das pautas em uma armadilha identitária nos movimentos de direitos humanos. A superafirmação desses lugares como únicas e exclusivas fontes de legitimidade para discutir problemas que tocam a todxs acabam alienando ainda mais esses grupos e desresponsabilizando aquelxs que deveriam se implicar (não por generosidade, mas por dever) nas lutas por igualdade e respeito.

Falar mais, ouvir mais e com muito mais gente

O “lugar de fala” tem sido, por vezes, apropriado de modo a não combater a estratificação, mas a reproduzir as hierarquias. Como se sabe e ficou claro nesse largo processo histórico de questionamento de privilégios, os lugares de enunciação não se traduzem, necessariamente, em posições coerentes e emancipatórias com a ontologia dos sujeitos.

Por exemplo, gays, apesar de viverem cotidianamente sua sexualidade dissidente da heteronormatividade, também reproduzem homofobia (para não dizer machismo, racismo, preconceito de classe, dentre outros). Ou seja, x oprimidx introjeta as mesmas estruturas, potencialmente, que induzem a seu assujeitamento na ordem de discriminação e preconceito, com todas as contradições aí existentes.

Perry Anderson, em seu conhecido ensaio sobre as “trilhas do materialismo histórico”, analisa a curiosa constatação de que as principais lideranças da classe operária não eram, por certidão de nascimento, membros dessa mesma classe. Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Lukács, Rosa Luxemburgo e outrxs que se engajaram profundamente nas lutas revolucionárias contra o capitalismo não eram de famílias empobrecidas e operárias. Se a “lei de ferro” do “lugar de fala” na sua acepção mais tradicional estivesse vigente desde o século XIX, provavelmente não conheceríamos o legado dessxs lutadorxs, que transitaram e viveram profundamente questões que poderiam ser consideradas alheias à sua condição e aos seus interesses mais imediatos.

Essa analogia evocada, guardada as proporções devidas, tem por finalidade apenas mostrar que uma abertura maior é necessária para a construção de alianças e apoios para as nossas pautas. A legítima reivindicação do “lugar de fala” não se pode engessar em uma espécie do “você sabe com quem está falando?” nas militâncias de direitos humanos."


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