A DITADURA DE ALTO QI

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Avaliando com a cabeça fria e protegido pela isenção da desesperança, não posso negar que a ditadura brasileira, a última, bem mereceria o título de uma das mais inteligentes - se não "a mais" - de toda a história contemporânea. E estou incluindo os cinco continentes no campeonato.
Se discordam, vamos aos fatos.
O golpe, em si, foi quase uma transferência pacífica de poder depois da fuga do presidente. Tropas de recrutas desfilando aqui e ali, pessoas esperando em casa para serem presas, um artigo de jornal ou outro mais indignado. Sequer houve resistência de franco-atiradores em cima de edifícios. Nenhuma greve de protesto, nenhuma mobilização nos subúrbios operários. Bem disse Golbery que tudo cairia como um castelo de cartas. Pois foi pior que isso. Não houve queda, tudo foi absorvido e a vida seguiu o rumo.
O dado mais curioso, entretanto, foi a incrível manutenção da liberdade de expressão. A imprensa continuou publicando a intelectualidade engajada, charges e caricaturas não deixaram de aparecer, o teatro Opinião navegava de vento em popa, os festivais seguiram premiando canções de protesto. O cinema novo, inclusive, atingiu o seu auge com "Terra em Transe". Caetano, Gil, Chico Buarque, Edu Lobo, Vandré, todos eles se fizeram consagrados sob o governo dos generais.
A sutileza desse paradoxo - governo golpista e liberdade cultural - é algo que mereceria estudos mais aprofundados. De fato, foi exatamente aí que a ditadura brasileira se diferenciou do fascismo.
O fascismo teve a característica de manter a mobilização política das massas sob uma base transclassista, submetendo o total da nação ao discurso do Estado paternal e vigilante. O autoritarismo brasileiro, diferentemente, marcou tento ao despolitizar as classes supostamente perigosas, deixando que os pensadores pequeno-burgueses delirassem sozinhos com seus bla-bla-blas incompreensíveis. A explicação do porquê de a Rede Globo ter montado seu monopólio pode estar aí. De 64 a 68, aos poucos, o povão foi sendo cooptado para o discurso do novo Brasil a partir de uma programação de costumes muito bem montada e de excelente qualidade.
Convenhamos, foi tudo muito fácil. Inclusive dar golpe no golpe com o AI-5. Mas sobre isso falo depois.

Comentários

  1. Interessante a abordagem. Nova e surpreendente embora, por vezes, A fina ironia do articulista, beire a uma certa "apologia" da ditadura ou da sua "inteligência". Na verdade, resistência, houve, inclusive armada, ainda que os "guerrilheiros" em sua maioria tenham sido oriundos da pequena burguesia. O então presidente João Goulart, que como dito "abandonou o barco", tinha estilo populista tal qual seu cunhado Leonel Brizola e, portanto, nunca se preocupou em organizar a classe trabalhadora para enfrentar um previsível golpe de estado. Seu governo estava mergulhado em profunda instabilidade política. Lembremos que Jango só assumiu devido a renúncia de Janio Quadros, do qual era vice, e após intrincadas costuras políticas e um plebiscito popular.

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  2. Na verdade, Ernani, hoje, me vendo como um libertário individualista, fico muito à vontade para reconhecer a inteligência em qualquer situação - ainda que essa inteligência esteja voltada contra mim. Nestes dias, quando vejo os Jaguares e os Ziraldos da vida abocanhando indenizações milionárias por sofrimentos pessoais que de fato não aconteceram, tenho percebido o quanto estava longe de um lado e de outro.
    A resistência armada foi micrométrica e quixotesca. Quase coisa de malucos. Argentina e Chile contam seus mortos e desaparecidos às dezenas de milhares. No Brasil, o número todo não chegou a 200.
    Aviso que vou continuar provocando
    Antes de falar no recrudescimento do autoritarismo inteligente, pretendo dizer algo sobre a burrece da esquerda.

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  3. Onde se leu "burrece", leia-se "burrice".

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  4. Não só uma Ditabranda, como quer a Folha, mas uma Ditabranda de alto QI?
    Não sou historiador, nem vivi os tempos de instalação da dita, branda ou dura. Em 64 eu tinha só sete anos, estava no 3º ano primário, como se dizia naquele tempo. Só tomei conhecimento da existência da cuja depois de 69, quando, um certo dia, os tanques do exército fecharam a Av. Brasil e o ônibus levou mais de 3 horas para me trazer do Centro para Brás de Pina, onde eu morava na época. A lembrança que ficou foi, apesar do cansaço de ficar em pé todo esse tempo num ônibus lotado, agradável: os estudantes do Pedro II fizemos uma bagunça enorme durante a viagem... Mas por tudo que aprendi até hoje sobre o assunto, nunca sequer passou pela minha imaginação a hipótese de identificar alguma inteligência privilegiada no comando daquilo que sempre me pareceu ser uma tremenda zona. Aguardo ansioso as evidências que certamente vc tem para apresentar em defesa de sua tese.

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  5. Esse é o cara! Na sua primeira postagem em nosso APERITIVO DIGITAL já provoca uma onda de indignações aqui e ali. Independente da minha posição pessoal sobre a versão apresentada, aliás, a expressão "ditadura inteligente" é uma contradição em si mesma, saúdo enfaticamente a chegada do companheiro e de sua finísima irreverência ao nosso Blog. Oooô...o BIGBANG voltou!

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  6. Ok, Patah, aceito o desafio.

    Vamos às evidências.

    Acaso existiu outra ditadura por aí com um congresso funcionando tendo um partido de situação e outro de oposição? Oposição controlada, admito, mas ainda assim existente.

    Onde mais no mundo aconteceu de um monopólio de comunicação - Rede Globo - empreender tão maravilhosamente bem a tarefa de despolitizar a parte debaixo da pirâmide? Ainda mais cooptando toda a classe artística de esquerda?

    E o Pasquim, que surgiu em 1969, em pleno Brasil do AI5? E exatamente no Rio, o Estado mais oposicionista? O Pasquim foi tolerado, Patah, porque quem lia era a esquerda de boteco, pessoas como nós - completamente inofensivas. A ditadura pouco ligou pra ele e o destruiu quando quis.

    Posso ir ao infinito.

    Mas vou fcehar lembrando que a ditadura terminou de maneira biodegradável. Absorvendo os crápulas e diluindo no processo quem deveria ser julgado - como os torturadores e os generais coniventes.

    A inteligência de falo está no fato de tudo ter se passado num quase completo desapercebimento da maioria esmagadora da população.

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  7. Vamos lá:
    1) Ditaduras com "parlamentos" funcionando? Não faltam exemplos. No caso brasileiro, houve cassações de mandatos e dissolução dos partidos políticos. Só não houve o fechamento do congresso porque não havia necessidade, o congresso era favorável à derrubada de Goulart e logo se mostrou dócil às exigências da nova ordem. Mas a dissolução dos partidos deixou claro que a "Redentora" tinha ido muito além do que os políticos e conspiradores golpistas imaginaram. Vide a decepção de Carlos Lacerda.

    2) Teu passado pedetista gravou a ferro quente no seu cérebro a imagem do "monopólio" da diabólica Rede Globo, a despolitizadora-mor da sociedade brasileira. Mero discurso brizolista, conteúdo zero.

    3) Porque o Pasquim foi tolerado? Não faço idéia, vai ver eles achavam engraçado. Ou não entendiam. Ou não liam. Ou não se importavam. Vc já viu o prazer que o gato sente brincando com o camundongo antes de matá-lo? O fato é que a imprensa alternativa, e aí eu cito, além do Pasquim, o Opinião e o Movimento, foi lenta e sadicamente asfixiada, pela pressão política contra os anunciantes, pela censura prévia e as apreensões, e, no limite, pelas bombas em bancas de jornais. E não foi só a imprensa alternativa a perseguida. A grande imprensa foi remodelada. Vinganças pessoais foram realizadas. Os Diários Associados foram destruídos. Vários outros jornais desapareceram por todo o país.
    Em 1969 eu tinha 12 anos. Não frequentava botecos com gente de esquerda, era vagamente místico, lia a Planeta, e tendia para uma filosofia que mais tarde identifiquei com o existencialismo. Dois anos mais tarde eu já lia o Pasquim e a edição brasileira da Rolling Stone. E posso testemunhar que o Pasquim tinha muita influência entre os proletas de Brás de Pina, não era só zona sul não.
    Por que no Rio, "o Estado mais oposicionista (Ecos brizolistas 2)"? Ora, por isso mesmo. Estranho seria se o Pasquim tivesse surgido no Piauí...

    4) Quanto ao completo desapercebimento da maioria esmagadora da população, esta é a regra, não a exceção, na ditadura ou fora dela. Ele só diminui em momentos de grande efervescência política, como foi o caso do movimento de 1º de Abril. Pelo menos em Brás de Pina, posso dar meu testemunho, o apoio da "opinião pública" aos golpistas foi largamente majoritário. E lá era bairro proletário.

    5) O "término" (alguns radicais diriam "eternização") da ditadura foi pactuado intra-elite. As massas foram mobilizadas para impor a negociação e traídas assim que a negociação se fez. Inteligência? Ou tradição (façamos a revolução antes que o povo a faça!)? Hábito, talvez? Um crime, com certeza, e com a conivência de pelo menos uma fração considerável da esquerda (Lembra dos seis anos para Figueiredo, do Brizola). Mas certamente não foi um projeto político pensado com antecedência e posto em prática com particular habilidade.

    Ler os livros do Gaspari sobre a ditadura é muito interessante, ele mostra a baderna que havia nos meios militares e que perdurou durante quase todo o período.

    Mas, no final, não é preciso postular uma inteligência especial para quem ganhou a disputa, seja no início ou no fim do processo. Pode acontecer que seja só o menos burro aquele que triunfou...

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