Sem querer empanar a beleza e a graça das últimas postagens, vou continuar no tema "violência" - até porque prometi ao meu leitor (se tenho um)ou aos meus leitores (se tenho pelo menos dois) que viria com a história até os dias de hoje.
Mas... onde foi que eu deixei em aberto mesmo? Ah, sim, no Madame Satã. Acabou que eu não disse como foi que o último malandrão encerrou a carreira. Satã foi preso pela morte a tiros de um provocadorzinho qualquer e tirou longa temporada na colônia da Ilha Grande. Quando solto, ficou por lá mesmo. Pescando e preparando ótimas peixadas para os curiosos que faziam dele atração turística. Nunca mais frequentou as noites da Lapa. Morreu velhinho e alquebrado.
O crepúsculo da malandragem autêntica se deu na ditadura Vargas. Um regime confeitado com glacê fascista não poderia permitir de maneira nenhuma a mitificação da vadiagem. Àquela época, não ter emprego fixo ou calo nas mãos era motivo mais que suficiente para a famosa "prisão para averiguações". E, de quebra, quando preso, o malandro ainda levava uns tapas na orelha só para "baixar a marra". Alguns saíram pela tangente e viraram informantes da polícia. Outros, mais espertos, viraram policiais mesmo.
De fato, o nosso último grande malandro talvez não tenha sido o Satã mas, sim, o próprio Getúlio Vargas. A malemolência e o jogo de cintura saíram dos morros e foram direto para o jogo político. Brizola fez história nesse mundo. E será que alguém aí tem dúvida de Lula e Zé Sarney são os grandes herdeiros contemporâneos da malandragem?
Flutuei no éter e viajei no assunto. Antes que escape de vez, voltemos ao terra-a-terra.
Pois, com o crepúsculo dos robinhúdis, os morros viraram uma tremenda bagunça, exatamente como diz aquela música do Jorge Ben (Charles Anjo 45). Os malandros otários deitaram na sopa e as favelas serviam como esconderijos ideais para assaltantezinhos porcos e foragidos da justiça. A imprensa dos anos 50 tratava a questão da criminalidade como se ela fosse mera questão de duelos entre xerifes e bandidos. Endeusou, inclusive, um detetive chamado Perpétuo com lendas absurdas colhidas de meias-verdades. Numa delas, dizia que Perpétuo, quando queria botar a mão num criminoso, sentava numa birosca na fronteira com o asfalto e mandava um moleque qualquer dar o recado. "Sobe lá e diz pro Unha-de-Gato que acabou pra ele e que estou esperando aqui no boteco do Ceará". Era a última chance do Unha-de-Gato não ser morto. O cara descia e entregava a arma. Pra cima de moá com essa...
Os bandidos também passaram a ser tratados com um quê de glamour. Mineirinho, por exemplo, um assaltante de caminhões de entrega, ganhou fama de Lampião. Escapava inacreditavelmente dos cercos montados. Tudo papo furado. Isso nada mas era que o preparo para o momento de glória das manchetes. Num determinado dia, Mineirinho não escapou e morreu fuzilado. A classe média se extasiava com a grande vitória de bem. Era tudo o que ela esperava. Uma foto de capa com Mineirinho todo furado de balas.
Com a vingança dos anjos, o cidadão comum poderia dormir em paz.
O problema é que mais e mais Mineirinhos continuaram aparecendo. Até que um deles, Cara-de-Cavalo, não se fez de rogado e passou fogo em outro detetive-lenda - Milton Le Cocq. O troco veio com juros pesados. Cara-de-Cavalo virou raposa de caça e, quando achado, morreu com mais de 40 tiros. Foi nessa caçada, aliás, que os policiais do Rio decidiram montar uma rede de solidariedade para eliminar facínoras de pequeno porte e, de quebra, queimar alguns arquivos inconvenientes. A tal da Scuderie LeCocq se transformou numa febre urbana. Muitos carros colocavam o símbolo no vidro - caveira com dois ossos, é claro - apenas para intimidar o vizinho. Repare que o nome era mesmo "Scuderie". Uma sofisticação à francesa para dar ares de respeitabilidade estética.
Pois essa organização aí nada mais era que a oficialização de um esquadrão da morte. Matava aquele tipo de bandidinho que insistia em não fazer a contribuição semanal e ainda ameaçava dar com a língua nos dentes. O Perpétuo, de que falei há pouco, por exemplo, levava o dele achacando bancas do jogo-do-bicho durante as rondas.
O jogo-do-bicho, diga-se de passagem, sempre esteve na raiz das relações perigosas entre policiais, político e bandidos. Se tem algo que deveria ser tombado pelo patrimônio histórico do crime nesta cidade é exatamente o seu loteamento por chefões que só tiveram os seus impérios ameaçados quando brigaram entre si. Mas isso aconteceu muito poucas vezes. No geral, o Bicho é uma estrutura sólida, quase secular, que sempre contou com a colaboração e a simpatia da população carioca. O negócio chega a ser encarado como cultural. Difícil imaginar alguém por aqui que nunca tenha feito sua fèzinha. Eis porque uma política de tolerância zero, no Rio de Janeiro, parece algo inimaginável. Todo mundo é culpado por alguma coisa e sabe disso. Os grandes bicheiros são perdoados todos os anos desde que suas escolas de samba façam bons espetáculos.
E assim sempre foi a nossa Guanabara. Nos 60, pois, já tinha o cenário ideal montado para a tragédia urbana que chegou e se tornou praticamente irresolvível. Volto ao assunto na próxima postagem. Mais uma só e acho que chego no Comando Vermelho.
Depois disso, prometo, falo sobre outras abobrinhas.
Eu sou uma das leitoras que estava esperando pelo resto da informação. Obrigada.
ResponderExcluirFale de abobrinhas, sim, que a vida é feita de altos e baixos, mas não abandone as contextualizações históricas, por favor. Gosto muito, aprendo com elas.
Beijos,
Dolly Doll
Recado guardado nos arquivos do HD e no coração, Dolly.
ResponderExcluirBeijos
Eu também como leitora espero pelo final. Afinal, acredito que qualquer infomação não fica no vazio. Obrigada por trazer à baila informações que ouvia das pessoas mais experientes da minha familia.
ResponderExcluirBjinhos.
Sandra
Adoro abobrinhas, rsrs, se forem recheadas de informção útil então devoro até a última letra e lendo sobre essa "bandidagem" me pergunto, como tanta gente sacana se da bem, e só os "bandidos" são caçados? É tanta corrupção que andar na linha se torna uma opção desrespeitada e inútil.
ResponderExcluirSabe o que gostei da vingança de Madame Satã... as vezes morro de vontade de fatiar umas bundas que me atormentam, kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk.
Bjussssssss menino, ótimo artigo.
Pois é, Sandra, bem me lembro que, com 8 anos, acompanhei mais ou menos o cerco ao Cara-de-Cavalo. E vibrei com a "pena de morte". Só adulto soube da verdadeira história.
ResponderExcluirE você, hein, Caca, que maldade! Já pensou que droga nem poder sentar numa privada durante seis meses? E o sacana do Satã, com a cara mais cínica do mundo, ainda dizia pra polícia que o cara tinha se cortado sozinho - na cerca de arame farpado (gargalhadas).
Beijos e bom feriado
Ao que provoca...essa história da malandragem, acho interessante, não pq eu sou fã e sim pq nàquela época o malandro era malandro e pelo pouco que sei eram respeitados e respeitava, tb, hj aff....bem diferente. Eu tb acompanhei alguma coisa de perto...foi da minha época...rsrs. Obrigada,
ResponderExcluirBjinhos.
O filme Cidade de Deus, na sua primeira parte, quando trata do "Trio Ternura", fala desta transição entre a bandidagem "light" e a "heavy", do Zé Pequeno.
ResponderExcluirHoje em dia, mesmo a bandidagem heavy já se alterou - não mais bandidos individuais, mas organizações criminosas.
O "polícia é polícia, bandido é bandido" da época do Lúcio Flávio e do Mariel Mariscott, auge do Esquadrão da Morte, já se complicou muito. Agora, polícia e bandido já não se distinguem com tanta facilidade, como bem mostra o caso do coordenador do AfroReggae.
Excelente o post. Muito atual e necessário para que possamos compreender historicamente como chegamos a situação que vivemos hoje. Valeu!
ResponderExcluirEm tempo: Esta postagem em nada conflita com postagens mais lights sobre artes e tais. Cada coisa no seu lugar e todas juntas aqui, ok?
Beijo