A história dessa culpa vem de muito antes que se pensa. Provavelmente, desde sempre. Nunca ouvi falar de um Rio de Janeiro que tivesse vivido com um mínimo de paz. No século passado, já era uma grande prova de coragem (ou estupidez) sair à noite, mais que além de duas esquinas. As maltas de capoeiristas fechavam os becos e atacavam os incautos sem dó nem piedade. Bom que se diga aqui que a capoeira, como luta, não nasceu nas senzalas coisa nenhuma; e também não veio da Bahia. Com e sem navalha, foi inventada e aperfeiçoada por malandros mulatos que formavam grupos de vagabundos e se enfrentavam pelo domínio de alguns bairros do centro carioca. A figura do mestre-sala cortejando a porta-bandeira, nas escolas de samba, faz uma alusão ao melhor bom-de-briga da turma defendendo a mulher mais bela do pedaço - e também a bandeira da gangue - dos ataques rivais.
Bandido, no Rio, desde os anos 50 pra trás, era um personagem identificado com a malandragem.
Os donos e protetores das favelas herdaram a condição dos donos e protetores dos cortiços e líderes das maltas. Eram os homens mais valentes da área, os mais espertos e muitas vezes os mais justos. Protegiam as mulheres, os velhos e as crianças. Faziam isso ou perdiam a moral, abrindo o caminho do reinado para outro. Há uma samba dos anos 40 que diz algo como "eu sou do tempo que o malandro não descia, mas a polícia no morro também não subia". Era mais ou menos esse o espírito, quase um acordo tácito. O bandidão não se fazia de folgado no asfalto e a cidade formal não fazia valer suas forças nos barracões de zinco.
Normalmente, o malandro vivia de pequenos golpes aqui e ali. Alguns exploravam tres ou quatro putas. Outros faziam uns servicinhos encomendados como, por exemplo, dar um corretivo num assanhado qualquer. Os mais abonados pegavam contrabando no cais de porto e repassavam mercadoria fina para a classe média.
Conheci pessoalmente um desses personagens, já vivendo de passado, completamente fora de ação. O falecido Bililico, como o pessoal velho da comunidade do Vidigal gosta de lembrar, fazia um tipo educado, sempre sorridente, banhado em perfume forte e muita brilhantina no cabelo. Treinava seus golpes em sacos de areia. Sempre chamado para apartar brigas e tirar bêbados inconvenientes das biroscas, Bililico fazia seu salário como leão-de-chácara de boates e vendendo proteção para os birosqueiros. Como todo valente que se prezava, Bililico morreu de tiro disparado por um otário qualquer.
Havia ainda outro tipo de malandro, aquele que fazia fama nos bares e na boêmia. Um deles se impôs como lenda. Inclusive por ser homossexual. Madame Satã mandava na Lapa dos anos 30 e as refregas de que participou merecem uma antologia. Não dominava qualquer técnica de luta, a não ser rudimentos de capoeiragem. O problema é que ele tinha um soco potentíssimo e uma inacreditável resistência para tomar pancadas e continuar partindo pra cima. Um osso duríssimo de roer, daqueles caras que não vale a pena enfrentar.
Outra característica marcante de Madame Satã era o humor.
Carregava no bolso uma navalha afiadíssima e tinha a mania de rasgar a bunda dos seus desafetos. Nada pode ser pior que isso. Depois de uma boa navalhada no lorto, o infeliz fica fora de ação por uns seis meses. Os pontos vivem arrebentando, é um inferno para cicatrizar e, se a coisa inflama, dói como mordida de diabo. Não há outra posição para dormir além de bruços.
De gente assim, acho que cada vez menos vamos ouvir falar. No Rio de hoje, o mito do bandido-malandro-de-morro não tem espaço.
E sobre o que ficou e porque ficou, converso na próxima postagem.
Meninos, sempre leio os posts, normalmente no meu email, onde os recebo, e por isso não deixo sempre comentário, mas queria dizer que estou por aqui, que gosto de tudo, que de vez em apareço pra dizer um oi. Oi.
ResponderExcluirBeijos,
Dolly
Excelente o post. Lembrou-me a música do Chico Buarque "Homenagem ao malandro". Segue aí link do YOUTUBE. Vale a pena ver...beijo.
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=veeisMvPJm8
A história do Bililico não é bem essa não!!!
ResponderExcluirAcho que não contei aqui exatamente a "história" do Bililico do Vidigal, Anônimo. E nenhuma história nunca é "exatamente essa"; nem mesmo a da Revolução Francesa...
ResponderExcluirMas você me deixou pra lá de curioso. O tema "malandragem" me interessa muito.
Qual é a sua exata história do tal do Bililico?