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A violência impessoal, no Rio de Janeiro, não é uma tragédia da miséria. É a tragédia de uma cultura. Uma passada sumária pela história é mais que suficiente para perceber que o problema tem raiz funda e espalhada. Mesmo a geografia da cidade - que do ponto de vista estético é mesmo razão de ufania - pode ser apresentada como um diferencial inigualável e negativo. É verdade que a nossa combinação mar-montanha tem o mesmo efeito das curvas sensuais de uma mulher. Ou, se preferirem, dos músculos reluzentes de um homem. Mas é também por causa dessas curvas e músculos que todos os bairros cariocas têm sua favela de estimação. Alguns mais de uma. Exceção única, talvez, para a Urca.
Calma, não estou dando intróito a uma tese boçal de criminalizaçao da favela apenas porque é favela. O que estou dizendo é que as favelas são, hoje e desde há muito, território sob o absoluto domínio tático do crime semi-organizado. E digo "semi" organizado porque é fantástico imaginar que bandidos sociopatas obedecem caninamente às ordens emanadas por uma sinarquia criminosa qualquer. Não é bem assim. A coisa é pulverizada e passo a contar o porquê.
No final dos anos 50, um general perigosamente pitoresco, Amaury Kruel, assumiu o comando da segurança no Estado. Foi com ele que tivemos a gênese da mentalidade que organicamente se encravou no sistema policial de hoje. Kruel era corrupto e, devagar e sempre, foi institucionalizando caixinhas para deixar em paz os que exploravam crimes sem sangue. Impunha o dízimo aos cafetões, aos donos de motéis e de clínicas de aborto, aos traficantes de drogas, aos bicheiros e até às cartomantes. Kruel também era um justiceiro estúpido. Às reinvindicações dos comerciantes por mais segurança em relação aos assaltos, respondeu com a formação de pequenos grupos de extermínio. Dos germes transmitidos por Kruel, o Rio nunca mais se curou. Assim como as bancas de jogo-de-bicho se disseminaram, outras demarcações de crime foram consolidadas na cidade. O território estava livre para os que sabiam como trabalhar com as regras.
Kruel deixou a secretaria para assumir o comando do II Exército, em São Paulo. Apoiou o golpe militar no dia seguinte à deflagração. Traiu Jango que, bobo, acreditava se ele o mais confiável e fiel dos generais. Caráter é caráter.
No Rio, as coisas continuavam com tinham sido deixadas. Um outro general, Luís França, montou, na polícia civil, uma espécie de esquadrão de elite com licença subentendida para matar. Eram os doze homens de ouro. Alguns desses doze fecharam o curriculo praticando crimes comuns. O mais famoso, Mariel Mariscot, morreu assassinado porque ficou ganancioso demais. Outro superstar, Sivuca, foi eleito deputado estadual com o bordão "bandido bom é bandido morto".
Reparem como tudo isso veio ocupando espaço assim como uma hera agressiva vai tomando o muro. Estima-se, hoje, que pelo menos 40% (porra, quarenta por cento!) da força policial carioca está de alguma forma comprometida com a corrupção e o crime.
A pior, porém, de todas as cagadas, foi a decisão da Ditadura de misturar, no presídio da Ilha Grande, presos comuns com presos políticas. Um infeliz qualquer, negando o proprio Marx, entendeu que o lumpesinato poderia ser a vanguarda da revolução social. E deitou a ensinar, a chefes de quadrilha, detalhes de organização, de disciplina, de profissionalismo etc. Um deles, William Lima, assaltante de banco conhecido como "Professor", tinha inteligência excepcional. Com os conhecimentos de um militante bolchevique, montou os rudimentos da "Falange Vermelha" a partir de elos de interesses entre bandidos presos e soltos. Transformou um grande amigo, tão intelignte quanto, Escadinha, chefe da quadrilha de traficantes do morro do Juramento, em um espécie de marechal-de-campo.
E então as coisas degringolaram de uma vez por todas.
A época, desgraçadamente, coincidiu com o auge de poder dos grandes cartéis de cocaína da Colômbia. Ora, o Rio de Janeiro era (e é) a mais cosmopolita de todas as cidades latino-americanas. Uma peneira em matéria de controle. E, mais que isso, pela enorme quantidade de favelas, o lugar ideal, coalhado de áreas onde o poder público jamais chegaria. Por dificuldades inerentes e tambem por interesse. Policiais e políticos corruptos aos borbotões.
Começava a semeadura para colher o Comando Vermelho. De que falarei na próxima postagem.
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A violência impessoal, no Rio de Janeiro, não é uma tragédia da miséria. É a tragédia de uma cultura. Uma passada sumária pela história é mais que suficiente para perceber que o problema tem raiz funda e espalhada. Mesmo a geografia da cidade - que do ponto de vista estético é mesmo razão de ufania - pode ser apresentada como um diferencial inigualável e negativo. É verdade que a nossa combinação mar-montanha tem o mesmo efeito das curvas sensuais de uma mulher. Ou, se preferirem, dos músculos reluzentes de um homem. Mas é também por causa dessas curvas e músculos que todos os bairros cariocas têm sua favela de estimação. Alguns mais de uma. Exceção única, talvez, para a Urca.
Calma, não estou dando intróito a uma tese boçal de criminalizaçao da favela apenas porque é favela. O que estou dizendo é que as favelas são, hoje e desde há muito, território sob o absoluto domínio tático do crime semi-organizado. E digo "semi" organizado porque é fantástico imaginar que bandidos sociopatas obedecem caninamente às ordens emanadas por uma sinarquia criminosa qualquer. Não é bem assim. A coisa é pulverizada e passo a contar o porquê.
No final dos anos 50, um general perigosamente pitoresco, Amaury Kruel, assumiu o comando da segurança no Estado. Foi com ele que tivemos a gênese da mentalidade que organicamente se encravou no sistema policial de hoje. Kruel era corrupto e, devagar e sempre, foi institucionalizando caixinhas para deixar em paz os que exploravam crimes sem sangue. Impunha o dízimo aos cafetões, aos donos de motéis e de clínicas de aborto, aos traficantes de drogas, aos bicheiros e até às cartomantes. Kruel também era um justiceiro estúpido. Às reinvindicações dos comerciantes por mais segurança em relação aos assaltos, respondeu com a formação de pequenos grupos de extermínio. Dos germes transmitidos por Kruel, o Rio nunca mais se curou. Assim como as bancas de jogo-de-bicho se disseminaram, outras demarcações de crime foram consolidadas na cidade. O território estava livre para os que sabiam como trabalhar com as regras.
Kruel deixou a secretaria para assumir o comando do II Exército, em São Paulo. Apoiou o golpe militar no dia seguinte à deflagração. Traiu Jango que, bobo, acreditava se ele o mais confiável e fiel dos generais. Caráter é caráter.
No Rio, as coisas continuavam com tinham sido deixadas. Um outro general, Luís França, montou, na polícia civil, uma espécie de esquadrão de elite com licença subentendida para matar. Eram os doze homens de ouro. Alguns desses doze fecharam o curriculo praticando crimes comuns. O mais famoso, Mariel Mariscot, morreu assassinado porque ficou ganancioso demais. Outro superstar, Sivuca, foi eleito deputado estadual com o bordão "bandido bom é bandido morto".
Reparem como tudo isso veio ocupando espaço assim como uma hera agressiva vai tomando o muro. Estima-se, hoje, que pelo menos 40% (porra, quarenta por cento!) da força policial carioca está de alguma forma comprometida com a corrupção e o crime.
A pior, porém, de todas as cagadas, foi a decisão da Ditadura de misturar, no presídio da Ilha Grande, presos comuns com presos políticas. Um infeliz qualquer, negando o proprio Marx, entendeu que o lumpesinato poderia ser a vanguarda da revolução social. E deitou a ensinar, a chefes de quadrilha, detalhes de organização, de disciplina, de profissionalismo etc. Um deles, William Lima, assaltante de banco conhecido como "Professor", tinha inteligência excepcional. Com os conhecimentos de um militante bolchevique, montou os rudimentos da "Falange Vermelha" a partir de elos de interesses entre bandidos presos e soltos. Transformou um grande amigo, tão intelignte quanto, Escadinha, chefe da quadrilha de traficantes do morro do Juramento, em um espécie de marechal-de-campo.
E então as coisas degringolaram de uma vez por todas.
A época, desgraçadamente, coincidiu com o auge de poder dos grandes cartéis de cocaína da Colômbia. Ora, o Rio de Janeiro era (e é) a mais cosmopolita de todas as cidades latino-americanas. Uma peneira em matéria de controle. E, mais que isso, pela enorme quantidade de favelas, o lugar ideal, coalhado de áreas onde o poder público jamais chegaria. Por dificuldades inerentes e tambem por interesse. Policiais e políticos corruptos aos borbotões.
Começava a semeadura para colher o Comando Vermelho. De que falarei na próxima postagem.
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Cara, brilhante o texto. Acompanho com interesse o desenrolar desta história capítulo a capítulo.
ResponderExcluirAbraço.
Pô, O que provoca, os caras da esquerda estavam presos! Mesmo que não tivessem ilusões no lumpensinato (talvez até tivessem mesmo - eram os anos 70, a "marginalidade" era incensada na época) eles iriam organizar quem, se não os outros presos? Além do mais, em se tratando de luta contra uma ditadura, qualquer movimento que pudesse colocar de alguma forma em xeque o poder de Estado encontraria quem o justificasse.
ResponderExcluirQuando vc abordar o comando vermelho, trataremos daquilo que a meu ver é a principal característica do crime carioca hoje: a questão da territorialidade.