Fuzis, Granadas, Tênis Nike e Muita Carne Barata


A estrutura criminosa do Comando Vermelho tem, evidentemente, sua gênese na Falange Vermelha, aquela organização fundada pelo assaltante “Professor” e o chefe do tráfico da favela do Juramento, Escadinha. Não foi elaborado, ao que se sabe, um manual de procedimentos a partir das dicas fornecidas pelos presos políticos. E não foi, principalmente, porque o que aconteceu durante a convivência foi nada mais que isso: dicas. Ninguém foi ganho para partido algum de esquerda, assim como as ações empreendidas pelos criminosos comuns não marcaram, em qualquer momento, sequer um rasgo de contestação ao regime capitalista ou mesmo aos sistema ditatorial. É bem verdade que o “Professor” até se aventurou a falar alguma coisa sobre marxismo, mas de uma maneira delirante e atabalhoada. Ele teve, porém, discernimento para repudiar o nome Falange Vermelha - que foi dado pela polícia, com ajuda de alguns abutres da imprensa carioca. No começo, ele até simpatizou com a estética e força sonora do “Falange”. Mas, alertado por alguns que falangismo evocava o formato de unidades da direita fascista, tratou de espalhar que o nome verdadeiro da organização era este que hoje tanto atazana a vida e o imaginário dos moradores do Rio de Janeiro: Comando Vermelho.

De tudo o que foi ensinado, o que mais o Comando Vermelho não aproveitou foi o modelo típico dos partidos comunistas de tomar decisões centralizados e obrigar toda a militância ao cumprimento da linha. Não há, nunca houve, um comando no Comando. A existência do Comando Vermelho é apenas uma farsa de sabor irresistível para os editores de jornais. De verdade mesmo, o que existe é uma enorme relação de compadrio entre as várias quadrilhas que dominam os espaços das favelas. Umas emprestam armas para outras, acolhem e escondem bandidos fugidos de ataques de tropas de choque em seus territórios, utilizam muitas vezes o crédito mútuo para manter o fornecimento aos consumidores e traficantes do asfalto etc. E a única intenção de tudo isso é manter o negócio, nada mais.

Portanto, o que se aproveitou foi aquilo que convinha à continuidade do comércio ilegal de drogas.



Algumas táticas de guerrilha urbana, por exemplo, foram engenhosamente aproveitadas. A maior deles, o conceito de domínio tático do território. Sempre que possível, jamais aceitar o confronto frontal com as forças do Estado. Eles atacam, nós recuamos; eles vão embora, nós retornamos. Se morre o chefe principal ou intermediário, marcar a demonstração de total controle da comunidade com o fechamento do comércio e de escolas em toda a área de influência. Se, num determinado momento, o aperto das divisões inimigas (leia-se polícia) está muito forte, uma das melhores técnicas para mudar o foco de atenção é queimar ônibus nas imediações. Assim, passa-se a impressão de que eles estão lutando contra muito mais gente do que pensam. O que a esquerda nunca ensinou - e também não aprendeu - foi que arma mais eficiente para domar o Estado é a corrupção.

Na forma cínica, os traficantes costumam não aceitar qualquer outra modalidade de crime em seus domínios que não o próprio tráfico. Primeiro, para não dar números que façam pensar ser aquela região digna de atenção especial dos setores da segurança pública. Segundo, é claro, para fazer média com a comunidade. Eles, os meninos, ali são a lei e eles garantem a paz e a tranqüilidade. Para tanto não hesitam em julgar e executar os pequenos transgressores com o fim de fazer exemplos.

Falei “meninos” não no sentido metafórico. O uso de crianças e adolescentes pelas quadrilhas é recorrente. Uma carne barata, eficiente e de muito fácil reposição. Crianças são corajosas e suficientemente cruéis, se bem convencidas. Por um tênis Nike, desprezam a vida numa missão qualquer. A Frente Nacional de Libertação deve muito da independência da Argélia à forma leal como garotinhos de onze e doze anos lutaram; também os sandinistas e os vietcongs puderam contar com pequenos bravos guerrilheiros nas batalhas mais ferozes. E ditaduras várias não fizeram por menos. Na Nicarágua, menininhos de oito anos foram treinados para arrancar olhos de opositores com colher de café durante interrogatórios. Sem culpa, sem vacilação. Há crianças nos morros com seis ou sete mortes nas costas.

No entanto, o zênite deste momento da criminalidade carioca, ao que parece, já foi atingido e entra agora em decadência. Aos poucos, o Brasil e o Rio de Janeiro vão perdendo importância como caixa de passagem da cocaína para os grandes mercados - EUA e Europa. O mercado consumidor de drogas exigiu e o mundo se readaptou. Hoje, há formas legais de se ficar chapado com substâncias sintéticas. Os maiores compradores dos morros, nestes dias, são os usuários do crack - porcaria barata e destinada a um público de baixíssima renda. Fontes seguras avaliam que o tráfico trabalha com uma margem de lucro em torno dos dez por cento. Muito pouco para o tamanho do risco. Aparentemente, os rachas entre os compadres do Comando Vermelho - formando facções como “Terceiro Comando” e “Amigos dos Amigos” - são um sinal de que já não há espaço para tantos bandidos numa mesma atividade.

Mas a luz no fim do túnel é um trem em sentido contrário.

Metade das favelas, hoje, estão dominadas pelas milícias - grupos formados, em sua maioria, por policiais civis e militares, alguns aposentados. Eles não traficam drogas, nem assaltam. Vendem serviços pelo sistema de monopólio. Entre taxas de segurança, distribuição de gás, ligações clandestinas e controle dos tranportes, faturam milhões sem que tenham de comprar nada na Bolívia. Sem qualquer sombra de dúvida, são um estepe a mais em termos de violência. Matam sem pestanejar os que quebram suas regras de mando.

Mas o que é pior, é que nem se dão ao trabalho de corromper policiais. São a própria polícia.

Comentários

  1. Excelente post. Só pra complementar, podemos citar alguns processos que contribuíram para levar a sitação ao ponto em que está. Primeiro, a existência de duas polícias, a civil e a militar, herança maldita da ditadura, gera uma divisão e um duplo comando altamente prejudiciais ao emprego eficiente de qualquer força policial. Segundo, a organização das forças armadas, cuja tropa não é profissionalizada, o que faz com que a cada ano novos recrutas sejam treinados no uso de armas pesadas e táticas de guerrilha e depois dispensados, gerando múltiplas oportunidades de emprego deste conhecimento especializado em atividades criminosas. E nem só este conhecimento específico ficou mais acessível - outras técnicas, como as ligadas à área de telefonia, tv a cabo, segurança patrimonial e outras foram disseminadas para setores mais amplos da sociedade, em função do processo de precarização do emprego causado pelos baixos salários e pela adoção generalizada da terceirização de mão-de-obra. Por fim, falta citar o voto popular dado aos "candidatos da comunidade", carreado pelos criminosos para se converter na ferramenta mais eficiente para o crescimento da expansão territorial das quadrilhas, aumentando assim a corrupção e a influência do crime organizado nas instituições políticas e de Estado.

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  2. Tem toda razão, Eduardo. Foquei apenas por um aspecto. Mas tudo isso que você falou são tambem ingredientes do bolo. Ou do imbroglio.
    E quanto mais penso no assunto, menos vejo solução.
    A não ser, é claro, se apontarmos para algo traumático e definitivo. Afinal, provavelmente, só a violência acabará com a violência.

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  3. PQP, Patah, estou péssimo por ter trocado seu nome - via nick. Mas dê um desconto: eu escrevi aquilo entre bocejos e cabeceios.

    De qualquer forma, o comentário complementar estava mesmo digno de um Eduardo.

    Beijo

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  4. Parabéns pelo seu post!

    Cheguei até ele rastreando a repercussão desse texto(!) e aqui encontrei a - para minha surpesa - única leitura inteligente dele e, não por coincidência, sua contestação.

    No geral o texto tem sido replicado de forma acrítica pelos que se envaideceram de ver seus pontos de vista(!!) externalizados de forma culta(!!!) por uma "dotora" (!!!!)

    A propósito, segundo o lattes da autora, ela não é nem nunca foi professora da UFRJ, como sugerem algums sites!

    Abraços!

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  5. Meu caro Anônimo,

    Confesso, de primeira, que fiquei lisonjeado pelos seus parabéns.

    Depois, levei algum tempo tentando, afinal, decifrar o diabo de interpretação heterodoxa que você teria dado ao meu texto.

    Mais tarde, sem a emoção impactante do elogio, percebi que o comentário nada tinha a ver com a peça produzida por este amador que vos fala.

    Você estava falando do texto do "que sempre chega depois" - Ai, Ieda.

    Estou devolvendo a medalha.

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  6. Que coisa, hein!? Fui citado duas vezes no mesmo post... indevido.
    Ilustríssimo Anônimo, tentei acompanhar seu reciocínio elogioso, mas apesar desta lupa que me vai ao lado esquerdo da bancada, nada pude de maior amplitude concluir, nem mesmo rastreando o rastro por você invocado.
    De toda forma, abraços

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  7. ADOREI!
    Os presos políticos com sua bela organização, organizaram a bandidagem carioca, hehehehe.
    Sei q não tinham esta intenção, mas bem q poderiam ter; informá-los, influenciá-los, manipulá-los, dirigi-los ou sei lá o quê, para uma revolução armada, colocar fogo no caldeirão do Estado, pobres X ricos, cultura X falta de educação, assim todos seriam militantes e não criminosos, rsrsrs, utopia minha?
    Quem sabe um dia algo muda no Reino.....
    Bryanna, carioquíssima mas de saco cheio.

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