POETA MALDITO PORRA NENHUMA



                                        Num sábado qualquer de 1989, apareceu um texto meu num grande jornal. Os editores do Jornal do Brasil me deram quase metade da página cinco do primeiro caderno para escrever um artigo esculhambando o Cazuza. Foi uma estréia antipática. À época, o Cazuza, já completamente arrasado pela aids, era uma espécie de enfant-terrible queridinho da classe artística, o bad-boy que a Globo adorava exibir como exemplo de tolerância democrática . Foi ele o primeiríssimo cidadão a soltar a palavra “puteiro”, alta e clara, em horário nobre e rede nacional.

A burrice da unanimidade, porém, não prevaleceu.

Veio a revista Veja e mandou uma reportagem de capa - “Cazuza, Uma Vítima da Aids Agoniza Em Praça Pública” - praticamente destruindo a imagem do cara como poeta genial mas até exaltando o fato de ele expor corajosamente sua doença e sua intimidade. A reação foi violentíssima. Tudo o que Cazuza e família não queriam ouvir era que ele, no fundo, não passava de um poetazinho menor que apenas teve a sorte de ser filho do homem mais poderoso da indústria fonográfica brasileira. Dois ou três dias depois da matéria, várias centenas de intelectuais e artistas assinavam um manifesto - Brasil, Mostra A Tua Cara - dizendo que Cazuza era o grande herói do nosso tempo, blablabla, e que a revista Veja era apenas mais um sócio do Brasil mostrando sua face retrógrada etc. Além de lido em várias sessões teatrais, o manifesto foi publicado em todos os jornais importantes do país.

Poucas coisas me provocam tanto nojo quanto abaixo-assinados de artistas e intelectuais. Sei que, não importa o assunto, de fato, de todos ali, doze ou treze sabem realmente o que estão assinando. O resto assina por pura sabujice e/ou por status. No caso de “Brasil Mostra a Tua Cara”, tinha Chico Buarque (claro, ele sempre adorou isso), Niemeyer (é outro), Ferreira Gullar, Zico, Xuxa, Elba Ramalho, Suzana Vieira etc. Acho que, mesmo nesta pequenina amostra, não preciso aqui dizer quais seriam os sabujos de manifesto. Daí que este ilustre desconhecido que vos fala estava realmente irritado com não poder fazer nada contra aquilo.

Até que veio o telefonema certo na hora exata.

Roberto Pompeu Toledo, editor do JB com quem eu trocava cartas, me ligou e ofereceu o espaço para ridicularizar os pretensos semi-deuses que tomaram as dores do Cazuza. Topei, entusiasmado. O artigo saiu em uma hora e foi publicado na íntegra. Bolei, como título, “Tais Quais Xiitas Enfurecidos”, uma alusão ao ataque dos fundamentalistas muçulmanos ao livro “Versos Satânicos”, do Salman Rushdie.

Lavei a alma, embora consciente de que a repercussão seria quase nula. Nem me preparei para um possível debate. Ungido que é ungido não dá cartaz para mortais anônimos. Eu fui escolhido pelo Jornal do Brasil porque não tinha nada a perder. Eles, porém, sim, e muito - escreveram um monte de merda. Daí que o confronto de idéias não aconteceu. E meus quinze minutos de fama acabaram ali.

Ainda hoje, porém, a figura e a história do Cazuza provocam raios e relâmpagos na minha mente. De pequenos em pequenos intervalos, ele invade minha televisão, meu jornal, minha revista. Há sempre uma historinha qualquer para o Cazuza ficar em evidência. E claro, lubrificado por sua incansável mãezinha, ainda há um indiscutível consenso brasileiro de que ele foi o maior poeta rebelde de sua geração, quem sabe talvez de todos os tempos.

Isso, meus amigos, dói pacas.

Costumo separar a, vamos dizer assim, obra do Cazuza em duas fases. A primeira, a do Barão Vermelho, gosto muito. Ele era um bom vocalista e fazia letras simples, mas bem encaixadas em algumas músicas muito boas. Acho que “Bete Balanço” e “Pro Dia Nascer Feliz” ficarão para sempre. O Barão Vermelho foi uma banda de rock bem acima da média nacional. Tão bom quanto o “Legião Urbana”, “Paralamas do Sucesso” e o “Ultraje a Rigor”. Foi fenômeno de época, porém. Nada que mereça uma sala especial no Museu da Imagem e do Som. Uma parede para todos é mais que suficiente.

Agora, o Cazuza da carreira solo, o tal poeta maldito, o contestador underground, esse aí eu acho uma titica. Lucinha Araújo mandou uma de que ele não pode sequer ser comparado com qualquer outro pretenso do mesmo nicho de rebeldia. E Caetano se saiu com a bobagem de que ainda vamos levar dez anos para compreender a profundidade dos seus versos.

Vamos, então, aos exemplos e , por favor, corrijam-me se vêem algo além de baboseira ou mera adolescentice.

Se muito não me engano, a grande largada do pós-Barão foi o disco “Exagerado”: “amor da minha vida / daqui até a eternidade / nossos destinos foram traçados / na maternidade”. Que coisa criativa, não?! A profundidade desta poesia e a exatidão da rima me deixam realmente com vontade nenhuma de comentar.

Mas vou pegar agora uma outra aqui mais festejada: “O Tempo Não Pára”, conclusão, aliás, muito interessante. Há um momento em que ele diz: “cansado de correr na direção contrária / sem pódio de chegada / ou beijo de namorada”. E, aí, é isso. Quem corre na direção contrária vai ficar mesmo cansado e sem conseguir chegar ao pódio. Até porque não existe “pódio de chegada”. Pódio é o lugar onde os vencedores são premiados e não o ponto onde todos têm de chegar. O que existe é bandeirada de chegada, fita de chegada, reta de chegada etc. Digo isso por que o Cazuza faz aquele tipo de poesia infantilóide que cata aqui e ali as palavras que rimam com a primeira idéia. Se fazem sentido ou não, ora, há sempre algum intelectual de esquina de zona sul prontinho para dar uma de mais inteligente que os outros e interpretar como metáfora genial aquilo que nada mais era que uma expressão bocó. Foi o que fizeram com “Codinome Beija-Flor”, o tempo todo. Para o mais intrigante conjunto de versos, “Que só eu que podia / Dentro da tua orelha fria / Dizer segredos de liquidificador”, vieram ondas e ondas de conversas das mais fiadas. Um tal de Valdi Mengardo disse que “liquidificador” mostrava a “incompatibilidade entre a sociedade de consumo e a poesia”. Outro tal-de, Fernando Toledo, considerou o eletrodoméstico como expressão “urbano-idustrializada para ‘segredo de polichinelo”. E outras explicações fantásticas surgiram como, por exemplo, “segredos contados ao pé do ouvido que causam aquele tremor no corpo, como um liquidificador". O próprio Cazuza tentou explicar: liquidificador nada mais era que fazer movimentos circulares no ouvido da (do) parceira (parceiro). O que falha nessa explicação é a impossibilidade de assobiar e chupar cana – fazer “liquidificador” e contar segredos ao mesmo tempo. Na minha opinião, a palavra “liquidificador” foi algo encontrado na métrica certa e sonoridade perfeita para fechar o verso. Nada mais. Serviria também “farinha com bolor”, “espirro multicor”...

De todas as criações do Cazuza, acho uma realmente especial. “Burguesia”, para mim, é ,disparado, a mais imbecil de todas as poesias políticas que já tive o desprazer de conferir. Uma completa e acabada mistura de ignorância com ingenuidade e contradição. Um letrista semi-analfabeto de funk carioca não faria pior. Não vou me perder aqui explicando cada besteira encontrada em “Burguesia”. É coisa demais. Vou ficar apenas na amostragem.

“A burguesia fede
A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia”

(Pois, se acreditarmos no princípio de Cazuza, o único lugar onde se faz poesia no planeta Terra é a Coréia do Norte. A grande novidade, porém, neste início desastrado, é o fato de a burguesia querer ficar rica. De onde será que ele tirou isso? E quanto a feder, como diria o histriônico cantor Falcão, ela fede tanto quanto o povão, mas pelo menos pode comprar bons perfumes)

“As pessoas vão ver que estão sendo roubadas
Vai haver uma revolução
Ao contrário da de 64”

(É mesmo preciso estar muito por fora de tudo para chamar aquela quartelada de 1964 de revolução)

“Vamos acabar com a burguesia
Vamos dinamitar a burguesia
Vamos pôr a burguesia na cadeia
Numa fazenda de trabalhos forçados
Eu sou burguês, mas eu sou artista
Estou do lado do povo, do povo”

(Essa agora é das mais intrigante. Cazuza era burguês mas era artista e, portanto, estava ao lado do povo e contra a burguesia. Seria um atenuante para não parar numa fazenda de trabalhos forçados?)

“Porcos num chiqueiro
São mais dignos que um burguês
Mas também existe o bom burguês
Que vive do seu trabalho honestamente
Mas este quer construir um país
E não abandoná-lo com uma pasta de dólares
O bom burguês é como o operário”

(O clímax da criação. De repente, ao que parece, Cazuza se lembrou do pai. E então inicia um trabalho de desconstrução de tudo o que vinha dizendo. Afinal, há uma burguesia que não é tão ruim assim, que é a mesma coisa que o proletariado. Dá ou não dá vontade de mandar tomar no cu?)

Aparentemente, o Cazuza sequer abriu um dicionário para tentar entender o significado da palavra “burguesia”. Jogou num campo que é minado mesmo para os artistas mais engajados. Caiu no discurso ginasiano de colégio público - a elite é culpada de tudo e o povo não é culpado de nada. Não há que ficar surpreso. Cazuza, no íntimo de sua angústia, nada tinha de revolucionário. De verdadeiro, de si mesmo, o que disse foi “Vida louca, vida breve / Se eu não posso te levar / Quero que você me leve”. Um tremendo convite à inércia.

O fato é que se não fosse a dedicação quase absoluta da Lucia Araújo – bancada pelo enorme poder do marido e pai - duvido muito que houvesse tanto auê em torno do tal do Cazuza. Certa vez, em entrevista, ela ousou comparar a produção e história do Cazuza com a de Noel Rosa. Cazuza morreu jovem, vítima da aids; Noel morreu mais jovem ainda, vítima da tuberculose. As semelhanças acabam aí. Mas a mamãe coruja do século insistiu que o Cazuza produziu mais e melhor. Só dou uma do Noel para acabar com a banca:

“Fecha a porta da direita
Com muito cuidADO
Que eu não estou dispOSTO
A ficar expOSTO
Ao sOL
Vá perguntar a seu freguês do LADO
Qual foi o resultADO
Do futebOL”

Isso aí, sim, é talento. Tudo perfeito em cada pedacinho e nada sujeito a invençõezinhas babacas de puxa-sacos.

Comentários

  1. Epa! O que provoca voltou em grande forma! O Blog tava meio paradão e o cara veio com essa cacetada de responsa! Me empolguei e fiz a ilustração pra matéria. Não concordo com tudo o que está escrito, mas assino embaixo quanto à crítica da poética pós-Barão e quanto à comparação despropositada com a obra do Noel, de longe, o Chico que me perdoe, o maior poeta da nossa música popular. Grande post!

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  2. Uauuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, fazia tempo que eu não lia algo tão bem escrito e colocado. Gosto de algumas músicas da primeira formação do Barão Vermelho.Quanto ao Cazuza, não passou de um menino que se ferrou por não ter mãe e pai presente em sua criação, fazia o que queria e e depois o pai dava um jeito.Deu no que deu alguém sem limite e se achando o máximo.
    Muito bom voltar da praia e ler vc.
    Bjussssssssssssssssssssss menino.

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  3. O "tal-de" Fernando Toledo era meu amigo pessoal e considerava a questão do "Liquidimbecilizador" a correta, a que seria a carícia que faz gozar qualquer vagabunda (ou viado em quastão), meu querido. Vc não sacou nada, rs...lamento!O "Eletrodoméstico urbano" foipura sacanagem com o leitor, hehehehe...adoro isso!

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  4. Evoé, Antonio, seja muito bem vindo.

    Sobre minha capacidade de "sacar" profundidades de bichos-grilo, talvez seja por encaixe na profecia de Caetano: quem sabe dez anos levarei para entender a essência do seu dizer e também a do do seu amigo pessoal...

    Ilumine, pois, a mente deste homo não tão sapiens que vos fala.

    Que diabo é "liquidimbecilizador"?

    E que raio de carícia pontogênica é essa que faz gozar vagabundas e viados?

    Só mais uma: onde é que está a "pura sacanagem" que o "eletrodomético urbano" fez com o leitor e que você tanto adora? Aliás, o eletrodoméstico rural é, por acaso, diferente do liquidificador que está em cima da minha geladeira?

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