O Dia em que os marcianos invadiram Monsenhor Paulo (Prólogo)


Tínhamos um grupo grande de amigos, em Brás de Pina, nos anos setenta.  Garotos, nossos interesses comuns incluíam música e futebol.  Quando não estávamos ouvindo uma, estávamos jogando o outro.  Vagamente hippies, queríamos conhecer o mundo.  Assim, um belo dia, cinco de nós decidimos acampar no interior de Minas, na fazenda do avô do Zé Antonio e do Dáriozinho, dois irmãos da vizinhança.  O Zé era da turma, o Dáriozinho, mais novo, coitado, sofria nas nossas mãos.  Os três que faltam para completar o quinteto eram eu (o Profeta, meu apelido na época), o João Carlos e o Renato (o Aranha). Respectivamente, quarto-zagueiro, beque central e meia-armador do glorioso Formiga Esporte Clube, um dos dois pujantes esquadrões ludopedísticos sediados na rua Taborarí.  Fizemos os preparativos, alguém arrumou umas barracas de lona do exército, compramos um monte de enlatados, juntamos os trocados para pagar as passagens. Do Rio até Três Corações, dalí até Elói Mendes, de onde, finalmente, garantia o Zé, sairia o ônibus para Monsenhor Paulo, terra da família dele.


Não lembro a idade que tinha na época, uns dezesseis, por aí.  O mais velho era o Aranha, uns dois anos mais.  João Carlos era da minha idade, Zé Antonio, um nada mais novo, e o Dáriozinho, coitado, uns dois ou três anos menos.  Embarcamos na rodoviária do Rio (ninguém nos impediu).  Chegamos em Três Corações já tarde e ficamos sabendo que ônibus para Elói Mendes só no dia seguinte.  Fomos dar uma volta pela cidade, nada de interessante, achamos um boteco, que logo fechou.  Ficamos na rua, um frio do cacete. A cidade, à noite, era patrulhada por duplas de soldados do exército (era plena ditadura), armados com enormes cassetetes.  Isso nos deixou um tanto intranquilos...  Pensamos em nos refugiar na zona da cidade, mas logo refugamos. Resolvemos então voltar à Rodoviária, para passar o resto da noite abrigados e pegar o ônibus no dia seguinte.  Só que a Rodoviária não permanecia aberta, e fechou também.  Estávamos na rua de novo, ao relento, e o frio só fazia aumentar.  Dividimos da maneira que deu um banco de madeira que havia fora do prédio da Rodoviária, nós cinco e mais um bêbado da cidade, todo mijado.  Nunca tinha sentido tanto frio na vida.

Depois de uma noite de cão, pegamos o ônibus bem cedo.  Chegamos a Elói Mendes por volta de oito horas da manhã.  Fomos então informados que a jardineira para Monsenhor Paulo não saía mais dali, mas sim de Varginha, que se tornara a cidade mais importante da região.  Não tínhamos grana para mais uma passagem.  Podíamos escolher entre voltar dali ou seguirmos a pé por 35 quilômetros de estrada de terra até Monsenhor Paulo.  Inocentes, puros e bestas, decidimos encarar o pó da estrada, confiantes em arrumar uma carona durante o percurso.  Pegamos nossas mochilas e barracas (a mochila com as latas, muito mais pesada e incômoda, dançando nas costas do Dáriozinho, coitado), e fomos em frente.

O sol forte logo expulsou o frio típico das manhãs mineiras e começou a torrar nossas cabeças.  Andamos num bom ritmo por umas quatro horas, sem incidentes, salvo um touro pouco sociável, plantado numa curva, que teve de ser contornado - tivemos de escalar um barranco íngreme para irmos adiante.

  

Pouco depois do meio-dia, chegamos a uma birosca numa encruzilhada da estrada, onde paramos para almoçar.  O dono inicialmente nos tomou por romeiros, como todos os outros (poucos) habitantes com que cruzáramos no caminho.  Quando explicamos que não, que íamos acampar em Monsenhor Paulo, ele nos disse que o caminhão da cooperativa dos produtores de leite da região iria passar em breve, para recolher os latões onde os fazendeiros deixavam a produção diária.  Ele conhecia o motorista e disse que poderíamos arrumar carona, sem problemas.  Animados com a perspectiva, ficamos aguardando o leiteiro, batendo papo com os locais sobre futebol e jogando bilhar numa mesinha daquela de fichas, bem maltratada, que havia lá.  As horas foram passando, nada de caminhão, o dono da birosca ficando cada vez mais sem graça com a demora inexplicada.  Começamos a nos preocupar com a chegada da noite, mas todos nos diziam, bons mineiros, esticando o beiço, que Monsenhor Paulo era "logo alí":  "vão passar duas pontes, dois morros e vocês logo estarão lá."  Declinamos então do gentil convite para jogarmos uma pelada no campo de uma fazenda próxima, nos despedimos e seguimos viagem, apressando o passo.  Já, já, iríamos aprender sobre a famosa "légua de beiço" mineira...

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