Passamos uma ponte, um morro, uma ponte, outro morro, e nada de cidade. Outras duas pontes, outros dois morros, cidade nenhuma. Não passava leiteiro, não passava ninguém pela estrada, completamente deserta. De quando em vez, um ou outro casebre, um ou outro mineirinho, sempre de cócoras, saudava os "romeiros". Questionados, todos esticavam o beiço e diziam: "Monsenhor Paulo? É logo alí: só mais duas pontes e dois morros". E seguíamos em frente, pasmos com o continuado milagre da multiplicação das pontes e morros de Minas. E caiu a noite. Lua nova, breu total. Luz, só das estrelas, aquele céu que nós, citadinos, chegamos a esquecer que existe.
Não tínhamos lanternas. Formamos então uma coluna, cada um segurando no ombro do que ia na frente, com medo de cairmos em algum valão. Foi aí que começaram os uivos dos cães das fazendas em volta. O medo de sermos atacados se instalou. O frio voltara, e tivemos de nos enrolar em nossos cobertores para suportá-lo. Dáriozinho, coitado, não aguentava mais o peso dos enlatados e, finalmente, mostramos alguma piedade por ele, tirando-lhe a mochila das costas. Cansados, com medo, fome, sede e frio, já não pensávamos em mais nada, a não ser em chegar em algum lugar.
De repente, faróis brilharam lá atrás na estrada. Um carro, enfim! Uma Kombi. Atravessados no caminho, fizemos o motorista parar. O homem, visivelmente assustado, balbuciou uma desculpa qualquer e arrancou, sem nos dar a carona pedida. Do que ele disse, só entendemos o famigerado "é logo alí". Àquela altura, nossa opinião sobre os mineiros em geral já era francamente desabonadora...
Mais um pouco, e finalmente surgiram uns postes esparsos da iluminação pública da cidade. Tínhamos, por fim, chegado. Entramos na primeira venda que encontramos, para tomarmos um guaraná. As pessoas presentes nos olhavam com um misto de espanto e temor, olhar que só entendemos quando nos deparamos com nossa imagem reletida num espelho. Explico: éramos cinco garotos desconhecidos, enrolados em cobertores, cobertos de poeira de cima a baixo, mas nada parecidos com qualquer coisa que aquelas pessoas já tivessem visto antes. Eu e o Aranha usávamos cabelos compridos e barba, estávamos imundos da estrada e éramos muito maiores do que a média dos habitantes do local. Eu media 1,84m, e o Aranha, uns 2,0m. O João Carlos, negro, muito magro e alto, mais de 1,90m, com um cabelo black power de dar inveja ao Tim Maia, e igualmente sujo, era particularmente assustador aos olhos deles. Parecíamos mesmo marcianos. Os irmãos Zé Antonio e Dáriozinho, apesar de também imundos, não assustavam tanto, as alturas e os cabelos deles eram "normais".
Nem tinha terminado meu guaraná, quando chegou a polícia local, um cabo acompanhado de três praças. Muito cautelosamente, tremendo como vara verde, o cabo nos perguntou quem éramos e o que fazíamos ali. Devidamente informado, o meganha acertou que levaria os irmãos até a casa dos parentes que viviam na cidade, para ver se alguém nos hospedaria naquela noite, uma vez que a fazenda do velho Totti, o avô deles, era um pouco distante e teríamos de esperar a jardineira, que só sairia na manhã seguinte. Ficamos nós, as bagagens e dois praças, aguardando a volta. Um tempo depois, voltaram. Nenhum dos parentes havia reconhecido os meninos. Não tínhamos onde ficar. O cabo, então, muito gentilmente, sugeriu que passássemos a noite em uma cela do local, garantindo, é claro, que a porta permaneceria aberta. Afinal, tratava-se de um convite. Ele igualmente prontificou-se a alertar o avô dos meninos da nossa chegada. Não achamos nada prudente recusarmos o "convite", de modo que seguimos os soldados até a tal cela, que ficava numa casinha destacada, pouco além da praça central da cidade, onde está aquela igreja enorme que ilustra o post anterior. A notícia dos estranhos visitantes já se espalhara por toda a cidade, e durante o percurso até a cela podíamos sentir os olhos dos nativos fixos em nós, por trás das janelas entreabertas. A tal casinha não era mais do que um telhado e duas celas nuas, com chão, teto e paredes de cimento liso, parecendo mais duas câmaras de um frigorífico. Fomos instalados numa delas, que estava vazia. Forramos o chão com nossas barracas de lona, vestimos todos os agasalhos que tínhamos trazido, todos os cobertores e tentamos dormir amontoados, num frio muito maior do que o da noite anterior em Três Corações. Mal notamos quando a porta da cela foi fechada à chave.
No dia seguinte, fomos acordados pelos policiais. Só então percebemos que, ao contrário do que pensáramos, a cela do lado não esteve vazia durante a noite. Havia dois presos nela, sem uma camisa que fosse, muito menos cobertores. Tinham passado aquela noite gelada com as costas nuas encostadas na porta de madeira, sem darem um pio. Se tivéssemos percebido que havia alguém ali, teríamos passado uma coberta pela abertura gradeada na porta, mas os presos não se manifestaram um instante sequer. Foi nosso primeiro contato com a dura realidade de quem é preso no Brasil. Os guardas nos apressaram a sair e nos escoltaram até o transporte para fora da cidade. Os olhares por trás das janelas se repetiram por todo o caminho. De bom, não precisamos pagar as passagens, cortesia da polícia local, visivelmente aliviada por nos ver partir.
A jardineira nos deixou na porta da fazenda do "seu" Totti, na estrada para Varginha. Era a manhã do terceiro dia de viagem. Passamos a porteira ressabiados, o onipresente perfume de estrume de vaca ofendendo nossas narinas. A casa da fazenda era perto da estrada, toda a família (enorme) perfilada na frente, alertada para a chegada dos "marcianos". Paramos em frente a eles, o velho se adiantou, veio em direção aos meninos, cara desconfiada. Se ele não reconhecesse os netos, com certeza teríamos que voltar dali mesmo, a viagem resultada num fiasco total.
Mas o avô viu no neto mais velho a cara escarrada do filho ausente.
Com o feliz reconhecimento, tudo mudou da água pro vinho. Os sorrisos se abriram e fomos recebidos de braços abertos. Não nos permitiram acampar, não havia necessidade, disseram, há quartos para todos, com camas, colchões, lençóis, cobertas e até, luxo dos luxos, travesseiros. Fomos informados de que toda a família iria se ausentar dali a nove dias, em romaria para uma festa religiosa em outra cidade, e que poderíamos ficar até àquela data. Entregamos nossa lataria para a avó, que nunca tinha visto comida enlatada antes, mas que deu um jeito de usar tudo, por acreditar que era de nosso gosto comer aquilo. Foram nove dias de paraíso na terra, muitas conversas, alguma paquera bem discreta com as meninas da casa, comida farta e deliciosa. Banhos quentes de banheira, a água aquecida em fogão de lenha pelas mulheres. O filho mais velho dos que moravam com os pais, cujo nome não recordo, era agrônomo, e nos mostrou tudo sobre a produção de café e leite, que era o forte da fazenda. Provamos da hospitalidade mineira, e podemos atestar que não há nada que supere os mineiros nesse aspecto.
Conhecemos Minas então e, de fato, não esquecemos mais.
Lembranças boas de serem lembradas e contadas...
ResponderExcluirE o Dáriozinho, tiveram coragem de deixar o garoto com a mochila mais pesada ? Afinal, continuam amigos?
Escreva,um dia, sobre esse futebol que vc tanto fala e que sei que adora..
beijos Patah
Sugestão anotada, Marília. O Formiga E. C. bem merece uma crônica.
ResponderExcluirO que houve com os outros componentes do quinteto foi:
- O Aranha, não vejo há muitos anos. A última vez que soube dele, tinha se formado em jornalismo e trabalhava como repórter policial de "O Dia". O irmão dele, o Floriano, ainda mora em Brás de Pina e é médico;
- Dos irmãos, um morreu, o Zé Antônio. Aos trinta anos, ataque cardíaco fulminante, recém-casado. O Dário, também não sei onde anda, a última vez que soube dele estava trabalhando na campanha de um deputado do PMDB;
- O João Carlos foi meu melhor amigo na infância e também faleceu, câncer, há poucos anos. Fui ao enterro dele, foi um dia muito triste. João teve uma vida intensa, correu o mundo, como era nossa vontade fazer naquela época.
Beijo.