O dia em que desaprendi a ler




Durante os anos de graduação em Ciências Sociais, passados no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do RJ (UFRJ), eu dividia meus dias entre as aulas, pela manhã, e o trabalho no Banco do Brasil, à tarde.

Nunca tive tempo para o convívio social com professores e colegas, indispensável para a construção daquilo hoje conhecido por "networking".  Assim, só pude me relacionar com os professores durante o tempo das aulas, e com os colegas que faziam os mesmos cursos que eu.  A minha participação na vida social e politica da instituição foi muito prejudicada.

Terminada a graduação, passei na seleção para o Mestrado e a rotina permaneceu a mesma, das aulas para o trabalho, todos os dias.  Meu pedido de licença sem vencimentos no Banco para usufruir uma das únicas três bolsas de estudos oferecidas pela instituição, e que eu conquistara na seleção, foi negado porque o Gerente da agência alegou que o quadro de funcionários estava incompleto.  Perdi então a bolsa, por não dispor de tempo integral, e também a possibilidade de fazer uma pós-graduação decente.

Aconteceu, porém, uma série de mudanças no Mestrado enquanto eu fazia os créditos obrigatórios.  Em princípio, o curso permitia aos alunos direcionarem seus esforços para uma de três áreas distintas de conhecimentos: sociologia, política ou antropologia.  Meu interesse era política e eu tinha um professor da graduação que eu pretendia fosse meu orientador para a tese, mas ele deixou o IFCS para fazer seu doutorado na USP.  Num curto espaço de tempo, todos os professores de Ciência Política, por um motivo ou por outro, se afastaram do Mestrado, seguidos logo depois pelos professores da área de Antropologia.  Assim, quando terminei meus créditos, só professores de sociologia estavam disponíveis para orientarem os mestrandos.

Eu estava então sem orientador e tendo que redigir a tese para obter o grau de Mestre.

Procurei o professor Machado, com quem tinha acabado de fazer um curso sobre teoria Marxista (na verdade eu tinha mesmo era inviabilizado o curso dele), que, para minha grata surpresa, aceitou o convite para ser meu orientador.  Machado, sociólogo, era sem dúvida o melhor orientador disponível na época e, mesmo eu tendo arrasado com o curso dele, mostrou-se interessado na proposta de tese que eu lhe apresentei.  O trabalho chamava-se "Casa de Ferreiro, Espeto de Pau - as lutas trabalhistas no interior dos Sindicatos" e pretendia surpreender os dirigentes sindicais do então "Novo Sindicalismo" da CUT na posição de patrões, quando das negociações salariais com os empregados dos sindicatos.

Na época. os empregados em entidades sindicais estavam organizando seu próprio sindicato e várias greves e manifestações estavam acontecendo.  E eu, como militante sindical, conhecia bem o pensamento dos dirigentes quando no papel de patrões...

A primeira reunião de trabalho com meu orientador deixou claro que a tarefa seria muito complicada, dada a diferença de pontos de vista entre mós.  A perspectiva com que eu encarava o assunto da tese parecia ao Machado rasa e pouco embasada teoricamente.  Para mim, era o orientador que não estava acostumado com a prática política que eu queria analisar.

Acabamos numa solução de compromisso:  eu deveria aprofundar meus conhecimentos sobre o tema clássico da burocracia, para daí extrair as ferramentas teóricas necessárias para embasar meu trabalho.  Minha primeira tarefa, ficou acertado, seria fichar o clássico "Economia e Sociedade", de Max Weber, para discutí-lo com o mestre.

Saí da reunião direto para a Livraria Ler, onde um amigo me conseguiu o livro com um desconto absolutamente chocante.  Não havia, então, edição em português da obra, e a que obtive era em espanhol, mexicana, do Fondo de Cultura, muito bem reputada, aliás, e que conservo até hoje.

Cheguei em casa, abri o livro na mesa de estudos, comecei a ler.  Ao fim da primeira página, percebi que não retivera nada do que tinha lido.  Cansaço, pensei. Vou tomar um banho e me recompor.  Banho tomado, recomposto, voltei ao livro.  Final do primeiro parágrafo, nada.  Vou deixar para o dia seguinte, decidi.  E deixei.

No outro dia, um sábado, sem aula e sem trabalho, nada me impediria de avançar na leitura.  Não passei da primeira linha.  Fui ler outra coisa, nada ficava retido, livro, jornal ou história em quadrinhos.  Minha capacidade de leitura sumira.  Eu não sabia mais ler!  Estranhamente, não fiquei preocupado, encarei com uma naturalidade inexplicável, pensando: "é meu inconsciente protestando quanto ao novo caminho que esta leitura irá dar à minha tese."   Achei que o apagão passaria logo, afinal eu tinha dois anos para redigir a tese e aquilo não podia ser mais do que uma reação mental à intensa carga de leitura a que eu estivera submetido durante os seis anos anteriores, de graduação e pós-graduação.  Fiquei, em lugar de preocupado, na verdade, envergonhado em não cumprir o acertado com meu orientador.

O fato foi que fiquei sem reter nada do que lia por quase cinco anos!   De tão envergonhado, nem procurei o Machado, sequer para informá-lo do que estava acontecendo, coisa de que me arrependo profundamente.  Muito aos pouquinhos, fui retendo uma historinha em quadrinhos aqui, um artigo de jornal ali, um normativo do trabalho ou outro.  Levei ainda um bom tempo para conseguir ler e entender um texto mais denso, como um livro ou uma tese de ciências sociais.  Minha capacidade de leitura acabou retornando, mas ainda hoje sinto uma certa resistência na leitura que, antes do apagão, jamais experimentara.

Comentários

  1. Estou passando pelo mesmo. Sou aluno de graduação do curso em Ciências Sociais e tive que trancar minha matrícula por conta desse problema... Estou em dúvida entre procurar um psicólogo/psiquiatra ou um neurologista...

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  2. Não procurei ninguém para resolver o problema. Na dúvida, e se você tiver condições, procure profissionais das duas áreas. Pelo menos, não ficará arrependimento por não ter buscado ajuda.

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