Por muito pouco não completei os dez anos sem usar as férias para viajar. Sair do Brasil, então, não faço há vinte. Viagens, e especialmente as viagens ao exterior, para mim, nunca foram dos maiores objetos do desejo. Não que não goste de conhecer outros lugares, culturas etc. Pelo contrario, adoro. E muitas vezes, quase todas, foi mesmo o caixa que não deixou. Mas devo dizer algo dos motivos espirituais que precisei relevar para finalmente passar pelo portão de saída do terminal internacional.
Dois, basicamente.
O primeiro, o vôo em si. Nada a ver com medo de voar, não ligo a mínima sequer para as piores turbulências. Admito uma certa tensãozinha na hora do pouso, nada mais. Mas o que estraga a festa mesmo é aquela, como direi, bem, aquela descida de nível à medida que se adentra à aeronave. Por sacanagem das companhias ou sei lá o quê, entramos pela frente, pela primeira classe, passamos de passagem por outra quase tão boa e, finalmente, lá estamos nós na tal da classe econômica. No espaço reservado aos que compraram passagens com descontos e aproveitaram os pontos do cartão de crédito: o olho da hecatombe. A “comunidade” voadora. O lugar onde as poltronas quase não reclinam, onde criancinhas berram desesperadas nos colos das mães, onde nunca há como encaixar sua bagagem de mão porque os que moraram na fila ocuparam cada centímetro com suas sacolas de tudo. Quando pensei que, para chegar a Roma, teria de passar doze horas naquela papazana popular, imaginei armar um teatro dramático qualquer só para ser retirado à força do avião. Felizmente não costumo ter a coragem dos voluntaristas. Relaxei, invoquei o martírio dos torturados e fiz o melhor que pude para sobreviver. Quatro filmes e algumas páginas de livros depois e faltava pouco para o sofrimento terminar.
A bem da verdade, uma ressalva. O serviço de bordo da Alitalia, ainda que no território da patuléia, foi supimpa. Comes muito bem servidos e bebes à vontade, incluídos aí vinhos de primeira. Comissários todos nota dez, especialmente no charme.
Quanto segundo motivo que me manteve por tanto tempo na toca, ele vem de um problema pessoal de temperamento. Uma limitação mental, pra ser sincero. Tenho enorme dificuldade com o falar e o ouvir dos idiomas. Não tanto com a leitura. Lembro que, quando morei em Portugal, levei mais ou menos um mês para começar a entender o que os locutores lusitanos diziam nos telenoticiários. É sério. Nos idos dos noventa era fluente, ou enganava bem, em francês. Pelo menos o suficiente para começar um doutorado na Universidade de Paris VIII. Isso, no entanto, enferrujou por completo. São duas décadas sem qualquer prática. Meu inglês involuiu do mal-e-porcamente para o absoluto pastelônico. E, sem inglês, meus amigos, lá fora, o jogo fica difícil a partir do aeroporto. Para se ter uma ideia, em Florença, só consegui me fazer entender mais ou menos quando improvisei uma ridícula entonação italiana ao português nato. Defeito grave este, sei disso. Me priva do que mais gosto de fazer que é comunicar. É muito duro ver as pessoas deitando falação numa língua e outra e você com cara de tacho tentando pescar gotinhas aqui e ali. Resolver essa parada na minha vida virou prioridade zero.
Preconceitos e defeitos pessoais à parte, percebi quanto tempo perdi na vida. A exuberância desta viagem à Toscana fecundou uma sementinha lá no fundo da alma e me deu um prazer nunca antes sentido. Agora, quero mais e mais.
Tinha estado Florença em 1990. Muito rapidamente, fiquei um dia e meio na cidade - se tanto. Foi um tempo em que resolvi correr a Europa como um louco, de cabo a rabo, tudo em um mês. Passava as noites nos trens e dava uma volta nas cidades durante os dias. Recordo que todas as cidades italianas me encantaram num flash. Mas aí é que está. A Italia é um país que deve ser saboreado lentamente. São mais de duzentas cidades de altíssimo interesse histórico - 44 são patrimonios históricos da humanidade. E em matéria de legado renascentista, nada supera Florença. Provavelmente, o mais vigoroso museu a céu aberto do mundo. Não é o maior – este, com certeza, é Roma. O problema é que em Roma se vive na dependência do ônibus para montar um passeio completo. Paris, outra maravilha histórica, exige o uso do metrô para ser bem explorada. Em Florença, tudo se faz a pé. Inclusive sair da cidade para conhecer as colinas da Toscana.
O detalhe, contudo, que torna Florença uma espécie de meca cultural obrigatória é a angústia de que podemos perdê-la. Dizem os norte-americanos que o encanto de San Francisco é que ela desaparecerá de uma vez só com o terremoto definitivo. Florença vem sendo dolorosamente dilacerada aos muitos ao longo de séculos. Desde 1333, de tempos em tempos, acontece uma enchente devastadora. Chove sempre demais e forte naquela terra. O dilúvio de 04 de novembro 1966 fez estragos que até hoje os fiorentinos e a humanidade não conseguiram superar . Tres mil metros quadrados de afrescos destruídos, 321 pinturas em madeira, 413 em tela, nada menos que 158 esculturas perdidas (muitas de Michelângelo). Na Biblioteca Nazionale, mais de 700 mil livros raros foram literalmente por água abaixo. Ainda com o que resta, se Florença deixar de existir, vinte por cento do tesouro artístico do mundo terá ido embora - fonte Unesco.
Egoisticamente confesso que minha intenção com essa viagem, porém, nem era aproveitar exatamente Florença como prato principal. O que eu queria de verdade era examinar in loco a arquitetura da casa Toscana, especialmente a da casa de campo. Meu maior projeto de vida é comprar um bom terreno numa área de colinas e construir uma adaptação tropical inspirada na simplicidade daquelas residências tão lindas cheias de vida. Escolhi Florença apenas como base-dormitório, já que é a principal cidade da região. A primeira e ótima surpresa começou exatamente aí. Por uma questão de preço e proximidade com o centro, reservei o hotel Capitol, na vialle Amendola. Hotelzinho tres estrelas, da rede alemã B&B (imagino que isso aí seja Bed and Breakfast). Muito bom mesmo. Quarto limpinho, climatizado, banho quente e farto, papel higienico macio. As toalhas são trocadas todos os dias, a roupa de cama de tres em tres – muito cuidado, portanto, para não deixar que as marcas de amor estraguem a brancura dos lençóis. E o melhor da hospedagem foi o café da manhã, incluído no preço. Farto. Pãezinhos variados, presunto, queijo, ovos, chocolate, geléia, mel, suco etc. Diária de 140 reais. Repito, reais. Tudo acertado no Decolar.com. Claro que ali ninguém leva ninguém no colo – isso é coisa de cinco estrelas. Checkin feito, você mesmo carrega suas malas . Para qualquer serviço extraordinário solicitado existe uma tabelinha de desestímulo, começa com 40 euros.
Falando nesse negócio de levar no colo, abro um parêntese sobre o jeito de ser italiano. Tive uma péssima e erradíssima impressão da outra vez. Me pareceram grosseiros, boquirrotos, impacientes. Nada a ver. Desta, o que pareciam defeitos viraram encantadoras qualidades. Eles são ótimos de lidar, espirituosos, sanguíneos. O que acontece é que, para eles, o turista estrangeiro não é um ET, como, por exemplo, no Rio de Janeiro. A Itália recebe cerca de 40 milhões de turistas todos os anos, muito próximo do número da própria população italiana. Acredito que Florença sozinha suporte mais viajantes que todo o Brasil somado. As figuras de fora, portanto, fazem parte da mobília urbana. Se você abre um mapa na rua para se localizar, isso é mais que normal. Não atrai o assédio da miséria ou da vigarice ou da encheção de saco – pelo menos não como aqui. E isso também não faz nenhuma pessoa merecedora de salamaleques especiais. Italiano ou não, o tratamento é o mesmo. Ponto.
Mas, cá entre nós, seria absolutamente normal se os italianos tivessem mesmo uma certa antipatia atávica pelos estrangeiros. Desde a queda do Império Romano a rapaziada daquela região não experimentou uma só vitória nas tantas guerras de que participou. A Itália perdeu todas. E os vencedores adotaram sempre o saque criminoso de obras de arte e tesouros arqueológicos como esporte principal. Britânicos, franceses, alemães, austríacos, espanhóis e norte-americanos patrocinaram roubos que até hoje são objeto de complicadas negociações internacionais. Há pouco tempo, no sótão de um ex-soldadinho que lutou pelos Estados Unidos na Segunda Guerra, foi encontrado um espetacular mapa de pedra contemporâneo do Coliseu. As dificuldades vão por aí.
Mas voltemos à vaca fria das dicas. Não esperem, claro, de mim, as famosas indicações de monumentos e museus que livros e revistas de turismo já fazem bem melhor. É aquele negócio já bem dito, terra de Michelangelo, Dante Alighieri, Maquiavel, Galileu Galilei, Petrarca, Leonardo da Vinci. A energia de cada um é sentida em todas as ruas, praças e jardins do centro histórico. Florença é daqueles lugares que deixam nos visitantes uma espécie de frustração orgástica. Por mais que nos tenha dado prazer total a cada segundo, o gosto amargo do quero-mais é cruelmente inevitável na despedida. Ninguém possui Florença por completo. São detalhes demais para a inteligência adquirida numa vida só.
Gosto de fazer uma comparação com o meu Rio de Janeiro, de resto, e modéstia a parte, um lugar também capaz de provocar taquicardias. Mas o fato é que, no Rio, a gente tem uma desconfortável sensação de que o homem está, há muito tempo e sem parar, tentando estragar a obra de Deus. Em Florença, ao contrário, a natureza parece apenas um conformado detalhe a compor a obra divina que o homem é capaz de fazer.
Pensando em tudo isso, decidi devorar Florença pelas beiradas. Não visitei os museus, não quis esperar por tres horas ou mais nas enormes filas dominadas pelas excursões japonesas (e agora também chinesas). Caí fora dos roteiros tradicionais. Preferi andar, andar e andar pelas ruazinhas marginais, sentir o pulsar do cotidiano nativo, entrar e sair de lojas discretas, comer em restaurantes pouco ou nunca experimentados pelos especialistas. Na viale Amendola, por exemplo, número 24, na Trattoria Dai i'Coco Fillipo saboreei um tal de spaghetti alla chitarra que simplesmente não pode ser comparado a qualquer coisa que já comi na minha vida. Com antipasto toscano, garrafa de vinho soberbo, tudo para duas pessoas, a conta ficou em 35 euros. No mesmo padrão de qualidade, também aconselho que provem a maravilhosa bisteca fiorentina da Trattoria Di'Sordo (via Gioberti 170). Com quase um quilo de carne para o casal - mais Chianti, entrada, sobremesa e café - o ataque ao bolso não irá além dos 52 euros. Excelência e preços parecidos também podem ser encontrados na Casa Del Vin Santo (via Porta Rossa 15) e na famosíssima Trattoria Zá Zá (Piazza del Mercato Centrale 26), onde a brasileirada deve procurar os serviços da garçonete Lucimar - ela está há vinte e oito anos na Itália mas nunca deixa de desfilar no carnaval da Sapucaí.
Dizem os guias mais vendidos que, para se comer na Italia, deve-se atentar para as diferenças entre uma osteria, uma trattoria e um ristorante. Em termos de preço, conforto e fartura, não vi nenhuma. Só os tamanhos dos salões me pareceram algo notáveis. Na dúvida, antes de adentrar um e outro, nada substitui a avaliação pessoal do cardápio na porta.
Outra dica que posso dar àqueles que ainda não conhecem Florença é sobre compras. Não é um lugar lá muito adequado para os sacoleiro. Dito isso, as melhores grifes italianas e francesas estão na via de Tornabuoni e vizinhanças. Bobagem comprar ali, porém. A uma hora da cidade, de ônibus, por 3,30 euros, numa localidade chamada Leccio, existe um shopping de luxo onde os Guccis, Armanis, Dolce&Gabanas e Pradas são vendidos com descontos de até setenta por cento. O design italiano de roupas também pode ser encontrado a preços de classe média nas lojas H&M (via Por Santa Maria), Oviesse (via Gioberti 158) e Barone (via Borgo La Croce 3).
Para os amantes dos livros, nada se compara à La Feltrinelli (via Dei Cerretani). Recebi tratamento vip, entretanto, na pequena libreria Chiari (piazza Salvemini 18).
No finalzinho do dia, cansado ou não, dê o fecho de ouro tomando, sentado, o melhor sorvete do universo no bar Pontevecchio, no extremo da idem. Seis euros por tres bolas caprichadas.
Na foto, lá estou num trem de alta velocidade a caminho de Veneza. Tirada no exato momento da chegada, eu acordando assustado.
ResponderExcluirCaracolesssssssssssss, mas é exatamente esse o roteiro Toscana, Lucca (terra de meu avô paterno, quero conhecer o tal portão Lenzi),Veneza, Padua(terra da avó do marido, e terminar na Sicilia) 2012 tem que ser o "ano". Adorei as dicas e a viagem que fiz em suas palavras. BjoCass.
ResponderExcluirMaravilha.
ResponderExcluirNão ter ido a Lucca, Cassinha, foi um pecado de que ainda vou me redimir. Aliás, na ponta do lapis, sou capaz de apostar que uma viagem para a Italia, na baixa temporada, fica mais barata do que pra Fernando de Noronha.
ResponderExcluirEi, Patah, estou aqui com umas garrafas de vinho Chianto pra gente derrubar. Quando????
Beijos