HOUSE : O REALISMO FANTASTICO DO Dr. Efedapê
Médicos em geral - e os meus médicos em particular - não fazem parte da minha lista de cartões boas festas. É uma relação históricamente difícil e sei que pelo andar da carruagem isso vai acabar muito mal pra mim. Se bem me lembro, tudo começou quando eu tinha uns seis ou sete anos e uma enorme doutora de aspecto germânico resolveu descolar o prepúcio da minha glande com uma enorme tesoura tipo bico-de-pato. A frio. Vi estrelas e cometas, berrei que nem um interrogado paquistanês. Desde ali, o pé não mais deixou de ficar atrás para receber diagnósticos e cumprir tratamentos. As estatísticas me dão alguma razão. A contagem dos fracassos deles comigo segue imbatível. Últimamente, aliás, tenho cronometrado consultas. Doze ou menos minutos é o padrão. A mais demorada, trinta minutos, foi porque ele estava mais interessado nos meus conhecimentos sobre arquitetura cicládica do que nas dores que me apoquentavam. Mas, claro, saí de lá com uma bela receita do mais novo e caro lançamento da industria farmacêutica. Resultados pífios. Em alguns casos, desisti. Já tenho certeza de que vou morrer sem ter ideia vaga das razões que fazem deflagrar minhas terríveis enxaquecas, cada vez mais frequentes. O lado bom é que, ao que parece, o corpo curtido de guerra está processando uma espécie de analgésico próprio. As crises estão numa descendente de duração e intensidade da dor. E isso também é um completo mistério para os filhos de Hipócrates.
Este meu ceticismo com a mística que envolve a categoria, diga-se de passagem, não é um ponto perdido no universo. Os norte-americanos costumam dizer que a característica mais comum entre os médicos é a capacidade inacreditável de selecionar o que querem ouvir. Isso, quando ouvem. Uma revista novaiorquina publicou que, em média, na primeira consulta, os pacientes são interrompidos 23 segundos depois de começarem a falar. E, depois disso, aí é que não falam mais nada mesmo.
Há, porém, um paradoxo importante a ser confessado.
Os meus seriados de TV favoritos: ER, Combat Hospital e House md. House, o campeão dos campeões. Estou comprando todas as temporadas em dvd. Pois é, sou contraditório. E daí? É uma relação de ódio e amor. De mais a mais, apenas os muito chatos não se contradizem - opinião pessoal.
Gosto do personagem de Hugh Laurie porque ele me parece a síntese hipertrofiada da arrogância da classe. Antipático, insensível ao ponto da estupidez, antissocial, anti-ético e, last but not least, extremamente direto no seu absoluto desprezo pela inteligência alheia. Alguém que todo profissional gostaria sinceramente de ser desde que tudo fosse aceito como meras excentricidades de um indiscutível gênio. House salva vidas que só ele poderia salvar. O resto é secundário.
O mais divertido do programa, entretanto, é que basta um pouco de bom senso e um mínimo de leitura para ficar contando, uma a uma, as fantásticas absurdezas que acontecem aos borbotões a cada episódio.
Uma das mais conhecidas máximas do jargão médico no EUA diz que, quando se ouve barulho de galope, o que vem chegando só pode ser cavalo. Ou, para usar uma bem brasileira, se a coisa tem boca de jacaré, tem couro de jacaré e tem rabo de jacaré... - ora, como é que não é jacaré? No resumo da ópera, não se deve esperar nada de muito diferente quando os sintomas e sinais já são conhecidos. Espirro, coriza, febre e dor de garganta devem ser tratados como gripe. O problema é que, para o dr, Gregory House, o que aparece confirmando o som dos cascos sempre é zebra e não cavalo. E se tem tudo de jacaré, o que se revela é a Cuca do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Todos os casos médicos de frequência um-em-um-milhão explodem na emergência do fictício Princeton-Plainsboro Teaching Hospital. Evidentemente, o programa seria uma titica enfadonha se apenas reproduzisse realisticamente os cotidianos repetitivos da média dos grandes e médios hospitais.
A brincadeira aqui, contudo, é colocar o rei pelado.
Num dos episódios mais interessantes, uma jovem senhorita, depois de idas e vindas, acaba recebendo o diagnóstico de doença do sono. O nome científico, vi na Wikipedia, é tripanossomíase africana. E a doença é africana da gema mesmo. Só acontece lá ou com quem esteve lá. Ocorre, porém, que a mocinha nunca sequer nem passou perto da mãe África. Mas foi aí que House teve a sacação genial. Tinha lido, há algum tempo, um trabalho de médicos portugueses indicando a possibilidade de transmissão da tal doença do sono também pelas relações sexuais. Bate-boca, investigação da equipe e bingo. A distinta rapariga não havia sido mesmo contaminada pela picadura da mosca tse-tse mas, sim, pela pica dura casual de um brasileiro que passara longa temporada em Angola. Bem, é verdade que com essa aí pelo menos saímos bem na fita como garanhões. Por outro, o que espanta na história toda é o banco de dados relacional imenso que o dr. House traz na cabeça. Armazenamento e rapidez de acesso dignos do sistema de defesa do território ianque. E no mínimo surpreendente para um cara que passa o dia todo atazanando amigos, inimigos, superiores e subordinados. Ou tocando guitarra. Ou bebendo, Ou procurando um jeito de conseguir mais frascos de hidrocodona para sua perna infartada. Nunca se vê o Greg devorando livros numa biblioteca, muito menos recortando artigos de revistas especializadas. Fuçando nos computadores, nem a pau. Ele é, em carne e osso, a sabedoria infinita adquirida por osmose etérea.
Você agora vai estranhar porque vou dar uma guinada de cento e oitenta.
O programa é ótimo, tem profundidade digna dos melhores cults.
Quase tudo até aqui dito é a parte superficial de um discurso de análise fácil. Algo que sairia num papo natural entre intelectuais jogando biriba. Erro comum. O buraco é mais embaixo, como perceberia na hora agá o adolescente desavisado. House não existe e nem jamais existiria, ponto pacífico. Está no reino do imaginário. Foi criado no absurdo de maneira proposital, como uma metáfora, uma encarnação do impossível. Nesse quadro de abstração personificada, ele é uma mistura de sonho dos sonhos com o pior pesadelo de qualquer centro médico. Do ponto de vista do sonho, o dr. Greg é o profissional definitivo. Resolve num clique o que os outros, por mais debruçados que estejam no assunto, nem arranham. As muitas tecnologias de pesquisa em ciências médicas, hoje em dia, são nada mais que gigantescos Houses à disposição dos melhores hospitais. O princípio do cada caso é um caso não se aplica na Medicina. Ali, cada caso é muito parecido com outro caso e muitas vezes idêntico. Não fosse assim, fabricar remédios seria inviável. Há um modo-tipo de adoecer que faz parte da regularidade fundamental da natureza. Dentro dessa lógica, e para ajudar nos quebra-cabeças, existe, por exemplo, um sistema de computadores chamado GIDEON (Global Infectious Diseases and Epidemology Networks) que atualiza semanalmente informações sobre surtos, ainda que mínimos, de doenças infecciosas em todo o mundo. Devidamente alimentado com os resultados dos exames e os sinais aparentes, cospe em tela a doença exata do gajo e recomenda o tratamento completo. Tem precisão diagnóstica superior a 95 por cento, E em muitíssimos casos descobre que o que parecia ser jacaré era, de fato, uma tartaruga. Há outros fantásticos bancos de dados pelo mundo afora capazes de detectar os cavalos mais manjados e as zebras mais improváveis. Excelente ferramenta, ainda, é o DXPlain, um sistema de apoio com mais de 4800 manifestações clínicas em cerca de 2200 doenças diferentes. Há também a versão eletrônica do usadíssimo Manual Merck que, aliás, dizem, inspirou boa parte dos cases destrinchados pela equipe do seriado. O recado por debaixo dos panos dado por House é muito claro: no futuro, uma base de dados complexa substituirá de vez os papas da diagnose; e os profissionais terão muito mais tempo para se preocuparem com o prognóstco.
Mas o encanto paralelo da bolação do personagem está na casca de Frankenstein que envolve o cérebro. House é um miserável filho da puta que abusa do direito de ser escroto. É chefe de equipe, embora despreze trabalhar com outros. Tudo o que faz é usar as pessoas para sinergizar seu próprio raciocínio. Verdade ou mentira, para ele, são meras peças de um jogo de xadrez. São manejadas conforme a conveniência tática do momento. É um psicótico obsessivo por dar xeque-mate nas charadas. Nada aquém. A coleção de vilanias é interminável. Num episódio qualquer da segunda temporada, ele disse que não estava nem um pouco preocupado com ética - apenas a pura medicina importava.. O bicho sempre pega aí. Para satisfazer mera curiosidade, injetou uma droga experimental contra hemicrânia contínua numa paciente em coma. Desidratou o fígado de outro só para que ele furasse a fila dos transplantes - ou seja, salvou mais um. Mas sifo o que estava na vez,. Manda a toda hora sua turma invadir residências para investigar causas possíveis, sem autorização. Foi capaz de prescrever cigarros para tratar de doença inflamatória intestinal; e uísque para curar intoxicação por metanol. As prescrições até têm base científica. Mas são, didaticamente, desastrosas. Uísque e cigarros não são, certamente, os melhores produtos para resolver um e outro problema. Além de, evidentemente, criarem outros bem mais graves. House vai sempre nessa batida. Nunca segue qualquer regra formal, passa por cima dos administradores, colegas e doentes como se eles fossem nada. Evita ao máximo qualquer contato com os pacientes. Para justificar os meios, sempre está com razão no fim. Ou não está? Eis o ponto. O sofisticado da série é a emulação de um dos debates mais quentes dos EUA: a relação médico-paciente. Lá, o confronto é acalorado quando se trata de ciência e moral A noção de cidadania e dignidade são elementos caros para os norte-americanos. Por mais competente que possa parecer um médico, é completamente inaceitável que ele tome decisões sem que o maior interessado tenha noção exata do que está ou vai acontecer com ele.
Na simbologia extrema da série, é notório que House jamais usa o jaleco branco. Isso, para mostrar que ele é um médico que não é medico. Aparentemente, foi uma exigência da categoria. Ela sabe o quanto tem custado caro exercer uma profissão de altíssimo risco. Na terra de marlboro, são mais de 100 mil mortes por ano devidas a erros médicos comprovados. O número é mais que o dobro das vítimas fatais por acidentes com automóveis. Evidentemente, num país onde o negócio é negociar, via de regra, boa parte dos confrontos acabam em gordíssimas indenizações.
O programa não vai além dos limites previsíveis, evidentemente. Temas mais robustos como aborto e eutanásia não serão jamais explorados como deveriam. Os fundamentalistas estão de olho e já sinalizaram ameaças.
E contra malucos que se acham instrumentos da ira divina, nem sequer um House deve ensaiar provocações.
O brilhantismo da atuação do Hugh Laurie amplia as dimensões ao personagem para além do que o roteiro oferece.
ResponderExcluirQuanto aos fundamentalistas, há um episódio na primeira temporada, se não me falha a minha marrom e malcheirosa memória, em que ele trata de um pastorzinho milagreiro que deve ter feito os ditos quicarem nos sapatos.. he, he...
Não há qualquer dúvida de que o personagem é um ateu. O problema é que a construção dele cria a hipótese de uma defesa brilhante do aborto ou da eutanásia. Por exemplo, provando por "a + b" que o feto não sente qualquer dor é que essa história salvar a alma não é da conta dele.
ResponderExcluirBem, aí a santa inquisição viria com tudo.
Quase 10 dias depois, eu li, rsrsr.
ResponderExcluirEle é hipócrita, cínico, viciado, e simplesmente encantador, desde que vc assista sem analisar o que se passa, leve-se somente em conta o faz de conta e a distração... tenho todos os episódios, da primeira a sexta temporada, preciso do seguintes. Sabe qual outra série, tb me atrai muito(fora as médicas) Criminal Minds, comportamento investigativo e degeneração mental, são muito interessantes.
BjoCass e até mais.
Se bem, Cassinha, que eu adoraria um médico que me receitasse uísque. De preferência, um puro malte.
ResponderExcluirCharuto também seria bem vindo.
De repente eu poderia importar uma caixinha free tax