Morreu Millôr. Antes do Sarney. Não existe justiça divina.


Em homenagem ao grande Millôr, Magnífico Reitor da Universidade do Meyer, que acaba de encerrar sua longa vigília no jornalismo, no teatro, nas artes plásticas e na vida, alguns exemplos vivos de gênio:

Trechos do livro CRÍTICA DA RAZÃO IMPURA OU O PRIMADO DA IGNORÂNCIA, de Millôr Fernandes:

Sobre Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso:
"(...) De uma coisa ninguém podia me acusar – de ter perdido meu tempo lendo FhC (superlativo de PhD). Achava meu tempo melhor aproveitado lendo o Almanaque da Saúde da Mulher. Mas quando o homem se tornou vosso Presidente, achei que devia ler o Mein Kampf (Minha Luta, em tradução literal) dele, quando lutava bravamente, no Chile, em sua Mercedes (‘A mais linda Mercedes azul que vi na minha vida’, segundo o companheiro Weffort, na tevê, quando ainda não sabia que ia ser Ministro), e nós ficávamos aqui, numa boa, papeando descontraidamente com a amável rapaziada do Dops-Doi-Codi. (...)"

Sobre Brejal dos Guajas, de José Sarney:
"(...) Brejal dos Guajas só pode ser considerado um livro porque, na definição da Unesco, livro ‘é uma publicação impressa não-periódica com um mínimo de 49 páginas’. O Brejal tem 50. Materialmente, Sir Ney excedeu-se em uma página. Contam os íntimos que o ‘escritor’, depois de vinte anos de esforço, bateu o ponto final na página 50 e gritou, aliviado, pra dona Kyola: ‘Mãiê, acabei!’(...)"

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Textos retirados do site da editora L&PM:

Millôr Fernandes nasceu no Meyer, subúrbio do Rio de Janeiro. Em mais de meio século de atuação permanente na imprensa, no teatro, na literatura e nas artes plásticas tornou-se uma das maiores personalidades de seu tempo. Combativo (“hay gobierno, soy contra”) como poucos, praticou o ideal de independência intelectual, tendo sido perseguido pelas ditaduras que assolaram o país neste século. Escreveu, traduziu e adaptou mais de uma centena de peças de teatro (Shakespeare, Pirandello, Molière, Racine, Brecht, Tchekov, Gorki, Fassbinder e muitos outros). Entre elas destacam-se os clássicos, Liberdade, liberdade (com Flávio Rangel), É..., Homem do princípio ao fim, Flávia, cabeça, tronco e membros, Um elefante no caos, Os órfãos de Jânio. Escreveu ainda 30 anos de mim mesmo, O livro vermelho dos pensamentos de Millôr, Todo o homem é minha caça, Tempo e contratempo, Poesias, Millôr definitivo – A Bíblia do Caos, entre dezenas de livros editados.

"Millôr Fernandes nasceu. Todo o seu aprendizado, desde a mais remota infância. Só aos 13 anos de idade, partindo de onde estava. E também mais tarde, já homem formado. No jornalismo e nas artes gráficas, especialmente. Sempre, porém, recusou-se, ou como se diz por aí. Contudo, no campo teatral, tanto então quanto agora. Sem a menor sombra de dúvida. Em todos seus livros publicados vê-se a mesma tendência. Nunca, porém diante de reprimidos. De 78 a 89, janeiro a fevereiro. De frente ou de perfil, como percebeu assim que terminou seu curso secundário. Quando o conheceu em Lisboa, o ditador Salazar, o que não significa absolutamente nada. Um dia, depois de um longo programa de televisão, foi exatamente o contrário. Amigos e mesmo pessoas remotamente interessadas - sem temor nenhum. Onde e como, mas talvez, talvez – Millôr, porém, nunca. Isso para não falar em termos públicos. Mas, ao ser premiado, disse logo bem alto - e realmente não falou em vão. Entre todos os tradutores brasileiros. Como ninguém ignora. De resto, sempre, até o Dia a Dia."

O texto acima foi o "Curriculum" publicado por Millôr na sua estréia no jornal O Dia, do Rio de Janeiro. Considerado "um dos poucos escritores universais que possuímos", na opinião do crítico Fausto Cunha, Millôr é carioca do Méier – segundo alguns seu nome seria Milton, não fosse um erro do tabelião – filho de Francisco Fernandes e de Maria Viola Fernandes. Seu pai, engenheiro emigrante da Espanha, morre em 1925, com apenas 36 anos. A família começa a passar dificuldades, e sua mãe fica horas em frente a uma máquina de costura para poder sustentar os quatro filhos. Apesar do aperto, o autor teve uma infância feliz, ao lado de dez tios, 42 primos e primas e da avó italiana D. Concetta de Napole Viola. A chegada ao Brasil das histórias em quadrinhos, em 1934, fazem Millôr dar vazão à criatividade e, sob a influência de seu tio Antônio Viola, tem seu primeiro trabalho publicado em um órgão da imprensa – O Jornal, do Rio de Janeiro, tendo recebido o pagamento de dez mil réis. Era o início do profissionalismo, adotado e defendido para sempre.

Em 1935, também com 36 anos, falece sua mãe, o que leva os irmãos Fernandes a ter uma vida dificílima. Estuda na Escola Ennes de Souza, de 1930 a 1935, por ele chamada de Universidade do Meyer, mas que na verdade era uma escola pública. Diz dever tudo o que sabe a sua professora, Isabel Mendes, depois diretora e hoje nome da escola. Se emociona ao falar sobre ela "...uma mulatinha magra e devotada, que me ensinou tudo que se deve aprender de um professor ou de uma escola: a gostar de estudar. Depois disso, pode-se ser autodidata. Escola, a não ser para campos técnicos/experimentais, é praticamente inútil."

Trabalhou, em 1938, com o Dr. Luiz Gonzaga da Cruz Magalhães Pinto, entregando o remédio para os rins "Urokava" em farmácias e drogarias. Durou pouco esse emprego. Logo vai ser contínuo, repaginador, factótum, na pequena revista O Cruzeiro, que nessa época tinha, além de Millôr, mais dois funcionários: um diretor e um paginador. A revista, anos depois, chegou a vender mais de 750 mil exemplares. Ciente da necessidade de se aprimorar, estuda no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro de 1939 a 1943. Em 1944 é co-diretor da revista A Cigarra, do Rio de Janeiro. Em 1945 inicia a publicação de seus trabalhos na revista O Cruzeiro, com o "Pif-Paf".

Nos anos seguintes, já integrado à intelectualidade carioca, convive com Péricles, criador de "O Amigo da Onça", Nelson Rodrigues, David Nasser, Jean Manson, Alfredo Machado, Fernando Chateaubriand, Emil Farhat e Accioly Netto, entre outros. Em 1948 vai, como correspondente da revista O Cruzeiro, para uma estadia de três meses em Hollywood, Califórnia, temporada que passa ao lado do cônsul Vinícius de Moraes, do cientista César Lates e da estrela Carmen Miranda. A partir de 1950, faz colaboração diária no jornal Diário da Noite, Rio de Janeiro.

Fez parte do grupo que "implantou" o frescobol no posto 9, Ipanema, Rio, em 1958. Nessa época foi censurado pelo mais liberal de todos os presidentes da República: Juscelino Kubitschek. Seu programa de TV, "Lições de um Ignorante", foi proibido após uma crítica à primeira dama do país: "Dona Sarah Kubitschek chegou ontem ao Brasil depois de cinco meses de viagem à Europa e foi condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho." Em 1961 trabalhou sete dias no jornal Tribuna da Imprensa, Rio, que mais tarde pertenceu a seu irmão Hélio Fernandes. Foi demitido por ter escrito um artigo sobre a corrupção na imprensa. Os editores, o poeta Mário Faustino e o jornalista Paulo Francis pediram também demissão em solidariedade.

Colabora com coluna diária no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 1962. "Esta é a Verdadeira História do Paraíso", doze páginas em cores, é publicada na revista O Cruzeiro, em 1963, provocando a ira da própria revista e de leitores católicos. Millôr deixa O Cruzeiro. A partir de 1964, e até 1974, colabora semanalmente no jornal Diário Popular, de Portugal. A página mereceria um comentário especial do ditador Oliveira Salazar: "Este gajo tem piada. Pena que escreva tão mal o português." De 1967 até nossos dias, tem marcado sua presença em jornais e revistas nacionais como o Correio da Manhã, Revista Diners, Veja, O Pasquim, revista IstoÉ, Jornal do Brasil, O Dia, Folha de São Paulo, entre outros.

Millôr morreu em 27 de março de 2012, aos 88 anos, no Rio.

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Na sua estréia na revista Veja, em 1968, apresentou-se com o texto que abaixo reproduzimos parcialmente:

SUPERMERCADO MILLÔR ANO I - N.º 1
(Autobiografia de mim mesmo à maneira de mim próprio)

"E lá vou eu de novo, sem freio nem pára-quedas. Saiam da frente, ou debaixo que, se não estou radioativo, muito menos estou radiopassivo. Quando me sentei para escrever vinha tão cheio de idéias que só me saíam gêmeas, as palavras -- reco-reco, tatibitate, ronronar, coré-coré, tom-tom, rema-rema, tintim-por-tintim. Fui obrigado a tomar uma pílula anticoncepcional. Agora estou bem, já não dói nada. Quem é que sou eu? Ah, que posso dizer? Como me espanta! Já não fazem Millôres como antigamente! Nasci pequeno e cresci aos poucos. Primeiro me fizeram os meios e, depois, as pontas. Só muito tarde cheguei aos extremos. Cabeça, tronco e membros, eis tudo. E não me revolto. Fiz três revoluções, todas perdidas. A primeira contra Deus, e ele me venceu com um sórdido milagre. A segunda com o destino, e ele me bateu, deixando-me só com seu pior enredo. A terceira contra mim mesmo, e a mim me consumi, e vim parar aqui. ... Dou um boi pra não entrar numa briga. Dou uma boiada pra sair dela. ...Aos quinze (anos) já era famoso em várias partes do mundo, todas elas no Brasil. Venho, em linha reta, de espanhóis e italianos. Dos espanhóis herdei a natural tentação do bravado, que já me levou a procurar colorir a vida com outras cores: céu feito de conhas de metal roxo e abóbora, mar todo vermelho, e mulheres azuis, verdes ciclames. Dos italianos que, tradicionalmente, dão para engraxates ou artistas, eu consegui conciliar as duas qualidades, emprestando um brilho novo ao humor nativo. Posso dizer que todo o País já riu de mim, embora poucos tenham rido do que é meu. Sou um crente, pois creio firmemente na descrença. ...Creio que a terra é chata. Procuro não sê-lo. ...Tudo o que não sei sempre ignorei sozinho. Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente, examinando qualquer dos meus trabalhos. A esta altura da vida, além de descendente e vivo, sou, também, antepassado. É bem verdade que, como Adão e Eva, depois de comerem a maçã, não registraram a idéia, daí em diante qualquer imbecil se achou no direito de fazer o mesmo. Só posso dizer, em abono meu, que ao repetir o Senhor, eu me empreguei a fundo. Em suma: um humorista nato. Muita gente, eu sei, preferiria que eu fosse um humorista morto, mas isso virá a seu tempo. Eles não perdem por esperar." Há pouco tempo um jornal publicou que Millôr estava todo cheio de si por ter recebido, em sua casa, uma carta de um leitor que estava assim sobrescritada: "Millôr Ipanema" É a glória!

Comentários

  1. Esse aí, sim, Patah, foi o exemplo acabado de que a toda-poderosa Globo não pode comprar tudo. E como ela tentou...

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