O egoísta e a vitrolinha


O  egoísta era exatamente assim, mas a vitrola era um
modelo maior, de mesa, com um gabinete de cerejeira
 O João Carlos, um dos meus melhores amigos de infância, infelizmente já falecido, tinha um tio que era da Marinha, o Luís Cláudio (se não me falha, etc.), que entendia um pouco de eletrônica prática. Eu tinha em casa uma vitrola Philips que também tinha rádio, mas que não era portátil, apesar de pequena. A parte do toca-discos ficava numa bandeja fechada na vertical que tinha de ser baixada para poder colocar os discos na horizontal, e o único alto-falante (mono) ficava na frente do pequeno móvel de madeira que era o corpo da vitrolinha propriamente dita.  Eu não podia ouvir música em um volume apropriado em casa e, na época, não havia saída para fones de ouvido (e nem fones de qualidade como existem hoje).

Numa das reuniões do time de futebol da rua, o Formiga Esporte Clube, cuja criação o Luís muito incentivara, perguntei pra ele se havia algum meio de instalar o fone que havia na época para uso exclusivo em radinhos de pilha, conhecido como "egoísta", na minha vitrola. Ele pediu para que eu levasse o aparelho para ele examinar. Eu levei e ele me devolveu o troço já com uma saída instalada no capricho, num furo perfeito no gabinete de madeira.


Fiquei muito agradecido e levei a vitrolinha pra casa, ansioso para ouvir como iria soar um disco no egoísta enfiado direto no meu ouvido direito. Por que no direito? Porque o esquerdo era surdo, ora. Escolhi um disco que eu amava naqueles idos de 1973: Trilogy, do Emerson, Lake & Palmer.  Coloquei o tal do egoísta na saída apropriada e pousei a agulha de safira presa naquela cápsula de cerâmica alongada típica das vitolas Phillips no início do vinil. The endless enigma, a faixa de abertura, começa baixinho, mas logo o som tomava todo o espaço disponível no meu cérebro. Era incrível, muito melhor do que qualquer coisa que eu poderia ter imaginado, só havia a música, nenhum ruído de fora, só a música, música, e mais música! Injetada direto no córtex cerebral! Nasceu aí uma paixão imorredoura, eterna.

Luís, não sei o que a vida fez contigo, mas permaneço eternamente grato a você por isso.

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